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O yakuza abalroou-o como se fosse um
rinoceronte, investindo com o ombro contra a barriga dele. Vi que o homem se
preparava para o impacto, mas, mais uma vez esqueceu-se de se desviar da linha
de ataque e o esforço não surtiu quase efeito nenhum. o yalcuza espetou-o de costas contra a parede e deu-lhe uma série de
murraças na cabeça e no pescoço. O outro agora em estado de choque e a
funcionar em piloto automático, largou o disco e conseguiu levantar os braços
para se defender de alguns golpes, mas o yakuza
ainda aos berros, afastou com palmadas as tentativas de bloqueio e continuou a esmurrá-lo.
Vi um dos socos atingir o lado esquerdo do pescoço do outro no território por
cima do seio carótideo e o homem começou a dar de si à medida que o seu sistema
nervoso compensava por excesso o abalo do golpe reduzindo o fluxo sanguíneo
para o cérebro. O yakuza, com os pés
fincados no chão, bem afastados, como se empunhasse um machado e estivesse a
rachar lenha continuou a atacar o pescoço e o cocuruto da cabeça da vítima. O outro
caiu ao chão, mas manteve-se suficientemente desperto para se enroscar e se
proteger, dentro dos limites do possível da carga de pontapés que se seguiu. A
bufar e a praguejar, o yakuza
baixou-se e entalou o tornozelo direito do prostrado entre o bíceps e o
antebraço. Por momentos, pensei que lhe ia fazer uma chave de pernas de jujitsu e tentar partir-lhe alguma
coisa. Em vez disso, endireitou-se e começou a arrastar o corpo do outro, de
barriga para baixo, até à entrada do ginásio, pondo-o na rua.
Voltou passado um pouco,
desacompanhado, e, depois de parar um instante para recuperar o fôlego, retomou
o seu devido lugar no banco sem olhar para mais nenhum dos presentes. Voltaram
todos ao que estavam a fazer: os amigos dele, por não se importarem com o
sucedido; os civis, por terem ficado encolhidos. Foi como se nada tivesse
acontecido, embora o silêncio generalizado indicasse que, de facto, acontecera.
Uma parte do meu cérebro, que está sempre a funcionar em pano de fundo,
registou o que me pareceram ser as valências do yakuza: força bruta, experiência com violência, familiaridade com
os princípios do ataque continuado. No que respeitava a pontos fracos,
identifiquei a escassez de sangue-frio, a falta de fôlego ao fim de uma curta
luta desigual, e os danos relativamente reduzidos que provocara apesar da
ferocidade do ataque. A não ser que ele tivesse fortes tendências sociopáticas,
o que seria uma improbabilidade estatística, eu apostava que o yakuza estaria agora ligeiramente
apreensivo relativamente ao que as pessoas teriam achado do seu acesso de
raiva. Aproveitei a oportunidade para me acercar do banco de supino e lhe
perguntar se precisava de ajuda.
Warui
na,
agradeceu, perceptivelmente grato pelo consolo que aquela simples interacção
lhe proporcionava. Iya, respondi. De
nada. Debrucei-me por cima dele e ajudei-o a levantar a barra. Reparei que
estava a levantar cento e cinquenta e cinco quilos. Conseguiu repetir o gesto
duas vezes, com alguma assistência da minha parte na segunda. Ainda devia estar
cheio de adrenalina depois da altercação recente e, durante aquele exercício,
registei interiormente os limites da sua força. Ajudei-o a pousar a barra nos
suportes verticais, depois assobiei baixinho entredentes numa demonstração ligeiramente
teatral de deferência à sua pujança física. Contornei o banco enquanto ele se
sentava e disse-lhe que, se voltasse a precisar de ajuda, podia contar comigo.
Fez que sim com a cabeça, num gesto brusco de agradecimento, e eu comecei a dar
meia volta. Parei, como se estivesse indeciso quanto a acrescentar ou não
alguma coisa, depois virei-me outra vez para ele. Aquele gajo devia ter confirmado
que já não precisavas disto, disse-lhe, em japonês. Há gente muito mal-educada.
Deste-lhe uma lição. Tornou a acenar com a cabeça, satisfeito com a minha
apreciação perspicaz do importante serviço que ele prestara à sociedade ao dar
cabo de um imbecil inofensivo e percebi que se sentiria à vontade para me
chamar a mim, o seu novo amigo de tempos a tempos, quando precisasse de ajuda.
Esperava que isso acontecesse hoje.
Desci rapidamente a Gaienhigashi-dori, esgueirando-me entre os peões no passeio
apinhado, ignorando a cacofonia do trânsito, das carrinhas com altifalantes e
dos angariadores de clientes, aproveitando os cromados e os vidros à minha volta
para verificar se ia alguém atrás de mim, a tentar acompanhar o andamento. Virei
à direita imediatamente antes do edifício Roi Roppongi; e outra vez à direita na
rua do ginásio, onde parei atrás de uma selva de bicicletas estacionadas, de costas
para o exterior incongruentemente cor-de-rosa de um café da Starbucks, à espera
de ver quem viria no meu encalço. Passaram por mim alguns grupos de jovens que iam
sair à noite, tão compenetrados na missão urgente de se divertirem, que nem se deram
conta do homem que se deixara ficar nas sombras. Ninguém activou o meu radar. Minutos
mais tarde, pus-me a caminho do ginásio. As instalações ocupavam o rés-do-chão de
um edifício comercial cinzento, cercado de escadas de emergência enferrujadas e
asfixiado por cabos de alta tensão que se agarravam à fachada como vegetação
apodrecida. Do lado oposto da rua encontrava-se um parque de estacionamento
cheio de Mercedes com vidros fumados e pneus de alta qualidade, símbolos de prestígio
da elite nacional e dos seus criminosos, entidades que se macaqueiam umas às outras,
partilhando confortavelmente os prazeres nocturnos do demi-monde obsceno de Roppongi. A própria rua era iluminada apenas pela
incandescência indiferente de um único candeeiro arqueado, com o pé engalanado
com cartazes que publicitavam os inúmeros serviços sexuais disponíveis na zona,
candeeiro que, banhado pela sua própria luminescência, parecia o pescoço alongado
de uma ave antediluviana a perder penas encaracoladas por uma doença. As
persianas estavam fechadas por detrás dos vidros laminados do ginásio, mas vi a
Harley-Davidson V-Rod do yakuza,
anodizada com alumínio, parada à porta, cercada de bicicletas, como um tubarão entre
rémoras. Logo a seguir às vidraças ficava a entrada do edifício. Experimentei abrir
a porta, mas estava trancada». In Barry Eisler, O Quinto Mandamento, 2004,
tradução de Luís Coimbra, Saída de Emergência, 2011, ISBN 978-989-6337-304-7.
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