«(…) Eu adorava as minhas crianças,
mas a verdade é que não eram muito inteligentes. Na sua maioria, as crianças
com problemas emocionais despendem tanta energia para os superar que lhes sobra
pouca para a aprendizagem. Além disso, é frequente ocorrerem outras síndromas aliadas
aos problemas psicológicos, ora contribuindo para eles, ora resultantes dos
mesmos. Por exemplo, duas das minhas crianças sofriam de síndroma de alcoolismo
fetal e uma outra tinha um problema neurológico que lhe causava uma lenta deterioração
do sistema nervoso central. Como consequência, nenhuma delas correspondia ao
padrão etário a que pertencia, apesar de algumas possuírem uma inteligência normal.
Por isso, foi para mim uma surpresa descobrir, durante os primeiros dias de
permanência de Sheila entre nós, que ela sabia efectuar correctamente operações
de somar e de subtrair, uma vez que só tinha frequentado três meses do primeiro
ano de escolaridade. Tive uma surpresa ainda maior alguns dias mais tarde,
quando descobri que sabia os significados de palavras pouco comuns. Uma delas
era chattel (escravo ou escrava).
[…]
Com um QI que depressa descobrimos
ser superior a 180, Sheila era totalmente eléctrica. Na verdade, tinha uma
energia mais parecida com a atómica. Descobrir que Sheila era uma criança com
elevados dotes intelectuais em nada contribuía para alterar a sua pobreza
opressiva, os seus antecedentes de violência ou a continuação do seu
comportamento permanentemente insólito. Sem saber exactamente por onde começar,
quando era necessário melhorar tantos aspectos, comecei pelas coisas mais
simples, aquelas que sabia estarem ao meu alcance. A higiene de Sheila era
consternadora. Literalmente, tinha apenas uma muda de roupa: uma T-shirt desbotada às riscas castanhas e
um par de jardineiras coçadas e demasiado pequenas. A condizer, calçava um par
de sapatilhas vermelhas e brancas esburacadas nos dedos. Usava roupa interior,
mas não tinha meias. Se alguma destas peças de roupa já rinha sido lavada, era
algo difícil de provar. Era óbvio que Sheila não era lavada. A sujidade estava
entranhada nas suas mãos, nos cotovelos e à volta dos tornozelos, ao ponto de
se terem formado linhas escuras na pele, nessas zonas do corpo. Para piorar a
situação, fazia muitas vezes chichi nas calças. O cheiro pestilento de urina
entranhava-se em qualquer parte da sala de aula por onde Sheila passasse.
Quando a inquiri acerca das suas instalações sanitárias, fiquei a saber que não
tinham água corrente. Parecia ser o melhor ponto de partida. A sua proximidade
era tão desagradável que provocava em qualquer de nós uma sensação de repulsa; assim,
muni-me de toalhas, sabonete e champô e comecei a dar banho a Sheila no grande
lava-louça que havia ao fundo da sala de aula.
Estava a lavá-la quando, pela
primeira vez, reparei nas cicatrizes. Eram pequenas, redondas e numerosas,
especialmente ao longo dos braços e no interior dos antebraços. As cicatrizes
eram velhas e tinham sarado há muito tempo, mas reconheci-as pela sua natureza:
eram marcas deixadas por um cigarro em contacto com a pele. É o teu pai quem te
faz estas coisas?, perguntei, tentando o mais possível manter um tom de voz
natural e informal. O meu papá não fazer isso! Não me fazer mal, respondeu, num
tom irado. Ele gostar muito de mim. Percebi que ela sabia o que eu estava a
perguntar. Fiz um gesto afirmativo com a cabeça e retirei-a da água para a
secar. Durante alguns momentos, Sheila manteve-se calada, mas subitamente,
voltou-se para me fitar nos olhos. Mas sabes o que a minha mamã fazer, um dia? Não.
O que foi? Levantou uma perna e virou-a para que eu visse. Na parte posterior,
mesmo acima do tornozelo, havia uma enorme cicatriz branca com cerca de cinco
centímetros de comprimento. A minha mamã empurrar-me para fora do carro e eu
cair e uma pedra cortar-me a perna... mesmo aqui. Estás a ver? Debrucei-me para
examinar a perna. O meu papá gosta muito de mim. Não abandonar-me em nenhuma estrada.
Não se fazer isso com crianças pequenas. Pois não, não se deve fazer isso». In
Torey Hayden, 1995, A Menina que Nunca Chorava, tradução de Fernando Antunes,
Editorial Presença, 2007, 2012, Lisboa, ISBN 978-972-233-804-2.
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