Ossos
velhos
«(…) Snow olhou na direcção dos
outros mergulhadores enquanto estes apertavam os cintos com os pesos, puxavam
pelos fechos éclair dos fatos e esticavam
as cordas pela borda da embarcação. Recordou-se da primeira regra número um da
brigada fluvial: todos mergulham. Fernandez, que estava nesse momento a amarrar
uma das cordas ao cunho, observava-o com um ar entendido. Eu também vou, chefe!,
disse Snow. O brigadeiro continuou a olhá-lo durante um certo tempo: Lembra-te
do que te ensinaram durante os treinos. Vai com calma. Quando mergulhamos pela
primeira vez no meio daquele lodo, temos tendência a suster a respiração. Não
faças isso; esse é o caminho mais rápido para uma embolia. Não enchas o fato
com demasiado ar. E por amor de Deus, nunca largues a corda de segurança. No
meio do lodo esquecemo-nos onde é que está a superfície. Se perderes a corda,
pode ser que o próximo cadáver que encontremos seja o teu. Em seguida apontou
na direcção da última corda. Chegou a tua vez. Snow ficou à espera, esforçando-se
por controlar a respiração, enquanto enfiava a máscara por cima da cabeça e
apertava a corda de segurança. Finalmente, depois de uma derradeira
verificação, lançou-se por cima da borda. Mesmo através do fato apertado e
sufocante, a água tinha um aspecto estranho. Ao mesmo tempo viscosa e xaroposa
não lhe corria junto aos ouvidos ou entre os dedos das mãos. Empurrá-la para os
lados era já um esforço, como se estivesse a nadar no meio de óleo de um cárter. Com o punho cerrado em torno da
corda, deixou-se mergulhar uns quantos metros abaixo da superfície. A esta
profundidade já mal se via o casco da lancha, engolido por um miasma de
minúsculas partículas que coalhava o fluido à sua volta. Procurou concentrar-se
no que o rodeava, através da luminosidade mortiça e esverdeada. Mesmo junto ao
nariz, ainda conseguia ver a mão enluvada agarrada à corda. A uma distância
maior, a outra mão esticada, a dedilhar as águas, era já quase invisível. Uma
infinidade de minúsculas partículas negras pendia por todo o lado. Abaixo dos
pés não se via coisa alguma: apenas escuridão. Sabia que a seis metros de
profundidade estava próximo do tecto de um outro mundo: um mundo feito de lama
espessa e constritora.
Pela primeira vez na vida, Snow
percebeu como dependia da luz do Sol e das águas límpidas para se sentir em
segurança. Mesmo a cinquenta metros de profundidade, as águas do mar de Cortez eram
transparentes; ali, a luz da lanterna dava-lhe uma sensação de abertura e
espaço. E ao pensar nisto, mergulhou mais uns dois metros, com os olhos a esforçarem-se
contra a escuridão dos fundos. De súbito, quase nos limites do perceptível, viu,
ou julgou ver, no meio da correnteza, uma névoa sólida, como se fosse uma
superfície venosa e ondulante. Tratava-se da camada exterior de lodo. Mergulhou
devagarinho com o estômago a apertar-se de nervosismo. O brigadeiro contara-lhe
que os mergulhadores costumavam ver coisas estranhas nestas águas turvas. Às
vezes tornava-se difícil diferenciar entre aquilo que era real e um simples
produto da imaginação.
Um dos pés aflorou aquela estranha
superfície, chegou mesmo a atravessá-la, e quase de imediato Snow viu-se
envolvido por uma nuvem turbilhante que logo suprimiu toda a visibilidade.
Tomado de pânico, num movimento convulsivo, agarrou-se à corda de segurança.
Por fim lá conseguiu acalmar-se, lembrou-se do rosto trocista de Fernandez e
mergulhou um pouco mais. Cada movimento que fazia despertava uma nova
tempestade de líquido negro que se lhe colava à máscara. Descobriu que estava instintivamente
a suster a respiração como se quisesse proteger-se deste ataque. Fez então um
esforço para respirar de um modo calmo, profundo e regular. Raios partam isto, pensou.
Bastou mergulhar uma única vez para a brigada fluvial e estou quase a
passar-me. Parou durante alguns instantes, a controlar o ritmo da respiração.
Por fim lá voltou a descer, agarrado à corda de segurança uns poucos metros de
cada vez, com movimentos comedidos, fazendo um esforço enorme para se descontrair.
Com uma certa surpresa deu-se conta de que já não lhe importava que os olhos
estivessem abertos ou cerrados. Não conseguia deixar de pensar no espesso manto
de lama que o aguardava lá no fundo. Decerto havia coisas encrostadas no meio
dela, como se fossem insectos no âmbar...
De súbito as botas pareceram tocar
no fundo. Mas este fundo era bem diferente de qualquer outro fundo marinho que
Snow já visitara. Este aqui parecia estar em vias de decomposição; cedia sob o
peso do seu corpo como um tipo de resistência elástica quase repugnante,
trepava à socapa pelos seus tornozelos, pelos joelhos, e por fim pelo peito,
como se estivesse a afundar-se num poço de pegajosas areias movediças. Não
tardou que a lama lhe cobrisse a cabeça, e ele cada vez mais fundo, sempre a
descer, agora mais devagarinho encapsulado da cabeça aos pés num visco que não
podia ser visto mas apenas sentido, um visco que aderia ao neoprene do fato de
mergulho. Ainda assim conseguia escutar o ruído das bolhas das suas exalações a
esforçarem-se por ascender à superfície; porém, estas não subiam com o rápido
abandono a que estava habituado mas sim numa lenta e pastosa flatulência. A
lama parecia oferecer-lhe cada vez mais resistência à medida que mergulhava.
Quantos mais metros deveria descer no meio desta me…?» In Douglas Preston e Lincoln
Child, Relicário, O inferno fica debaixo da terra, tradução de João Barreiros,
Saída de Emergência, 2009, ISBN 978-989-637-126-5.
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