A plenitude da existência
«(…) Há em mim, não sei por que sortilégio de
divindades malvadas, uma tara negativa irremediável para o desempenho de umas
tantas funções específicas da ladinagem humana. O que eu encontro dentro de mim
é uma coisa sem fundo, uma espécie aberratória de buraco na alma, e uma noite
muito grande e muito horrível em que ando, a todo o instante, a topar comigo
mesmo, espantado dos ângulos do meu corpo e da pertinácia perseguidora de minha
sombra. Um silêncio pesado se instalou na sala, até que Augusto, com a voz
embargada, me contou sobre a morte, num parto prematuro, de seu primeiro filho.
No dia 2 de fevereiro, às seis horas da tarde, Esther abortara. A criança tinha
sete meses incompletos quando nasceu, devia ser alguma coisa tão frágil quanto
este filhote de passarinho que vejo moribundo a meus pés aqui no Passeio Público.
Tomo-o da maneira mais cuidadosa, formo um berço para ele com a concha de minha
mão e o afago, quem sabe com o calor de meu corpo, com o afecto, ele possa não
recuperar-se ao menos sentir-se reconfortado no momento de sua morte. Madame
Morand dissera que a criança havia morrido no ventre de Esther quatro ou cinco
dias antes. Fora uma sorte Esther ter escapado com vida. Madame Genny Morand
era uma parteira francesa de muito prestígio e solicitada por todos, tanto que
às vezes se tornava necessária a intervenção de um vereador ou de um poderoso
comerciante para se obter o seu atendimento. Não era apenas uma curiosa, mas
uma mulher com curso científico na França e que tinha enriquecido a faire l'Amérique. Trafegava num carro de
luxo guiado por um cocheiro de chapéu alto com roseta na copa. Fiquei
imaginando como Augusto tinha conseguido tal madame para atender Esther, com a sua
parca comissão de corrector de seguros e o pequeno salário de professor. Quem teria pago o atendimento? A herança de dona
Mocinha fora de mais de cinquenta e oito contos de réis, porém ela devia ter
usado grande parte disso comprando o sobrado na Paraíba. A parte de Augusto na
venda do engenho, dividida entre sete irmãos, fora gasta nos primeiros meses do
seu casamento e da sua chegada ao Rio de Janeiro. Mas isso não importava. Senti
meu sangue gelar quando pensei no perigo que rondara Esther. Madame Morand
tinha feito muitas recomendações, que Esther estava cumprindo, com a ajuda de
tia Alice. Augusto disse que aquela criatura nati-morta teria sido, talvez, uma
vigorosa representação típica da morfogénese da sua família. Teria ele visto o
cadáver? Como aconteceu tudo isso? Esther gritando no quarto, com madame Morand
diante de suas pernas afastadas puxando a criatura, tia Alice segurando a mão
da parturiente e secando a sua fronte, rezando um terço, Augusto percorrendo a
sala de um a outro lado, as mãos nas costas, tio Bernardino cabisbaixo fumando
charuto, a parteira tirava a criança e via que estava morta e Esther deixava de
sorrir, percebendo algo de errado, Augusto empalidecia ao ver o rosto contrito
de madame Morand ao abrir a porta, corria para o quarto e levantava o lenço
ensanguentado que cobria o corpo, numa cestinha de pão. Fui tomado por um
horrível sentimento de culpa, como se eu mesmo tivesse morto a criança. Não
queria que Esther tivesse um filho, ainda que fosse de Augusto.
Com os dedos trémulos, peguei um fósforo e acendi um
cigarro. Augusto percebeu o meu sofrimento e mudou de assunto, falando sobre as
aulas particulares que dava, com grande sacrifício, pois ia de casa em casa dos
alunos para lecioná-los, numa cansativa perambulação pelas ruas geladas da
cidade. Tenho-me sentido bastante incomodado do estômago e dos nervos, disse. Mas
é bem provável que a outra face brilhante da vida venha ocupar daqui a pouco
tempo o lugar negro em que os maus demónios, talvez por um mero gracejo
infernal, me têm colocado. Ele era assim. Achava que os sofrimentos vêm do
inferno, e decerto vêm, que são brincadeiras dos demónios. Tinha uma visão
jocosa do inferno. Ao contrário do que pensam dele, era um homem
surpreendentemente bem-humorado, na sua essência mais íntima. Ele mesmo se
tornava um demónio para escrever os seus versos e os túmulos, os vermes, os
esqueletos mórbidos, a noite funda, o poço, os lírios secos, os sábados de
infâmias, os defuntos no chão frio, a mosca debochada, as mãos magras, a energúmena
grei dos ébrios da urbe, a estática fatal das paixões cegas, o nigir nos neurónios,
a promiscuidade das adegas, as substâncias tóxicas, a mandíbula inchada de um
morfético de orelhas de um tamanho aberratório, um sonho inchado, podre, todos
estes elementos da imaginação de Augusto não passavam de gracejos infernais». In
Ana Miranda, A Última Quimera, Companhia das Letras, 1995, ISBN 857-164-454-3.
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