«(…)
O marido dormia enrolado num cobertor, depois de se ter lavado, a primeira coisa
que fazia ao chegar da frente era esfregar-se todo a diluir o cheiro pestilento
das trincheiras, não queria que Filippa o visse coberto daquele cheiro infecto,
Filippa já o cheirara em tantos corpos, porque não no dele? Olhou-o com uma
tristeza terna, o seu marido Miguel, o belo oficial venerador da honra e da disciplina
que a levara ao altar, o pai dos seus filhos, aprisionado nesta teia destrutiva
que nada tinha a ver com ele. Sentiu alívio por não ter que se sujeitar, como de
costume, ao seu desejo tirânico, ali, de imediato, quase sem falarem. Mas logo
sentiu culpa pelo alívio, pobre gladiador exaurido, mudámos os dois, no corpo e
na alma. Ao longo de oito anos de casados, nunca Miguel dera sinais de volúpia,
sempre comedido, executando os deveres conjugais com o cuidado respeitoso da
castidade cristã, como era possível transformar-se de súbito num amante brutal e
opressivo que a assustara no princípio e continuava a incomodá-la, embora o tolerasse
como uma doença de guerra? Saciado, vinha-lhe a vergonha, pedia desculpa, sou um
bruto, desculpa, regressando ao senhor cortês, de bigode à Kaiser.
Que
estranho o bigode à Kaiser manter-se viçoso, disse em voz alta. De três em três
dias, a não ser que houvesse algum contratempo, e havia-os com frequência, Miguel
vinha passar a noite com ela, privilégio de oficial a combater na frente, tal como
o posto de capitão lhe facultava um carro para transpor os quarenta quilómetros
que separavam Arras de Neuve Chapelle, onde ele exercia a guerra. De início, o marido
recusara a sugestão de Filippa ficar em Arras, demasiado próxima da frente de batalha,
os alemães estão a 10 quilómetros, é uma loucura! Aí que te enganas, objectara o
tio Louis François. Agora, quase três meses passados sobre a decisão, Miguel abençoava
a ideia de a ter ali, duas vezes por semana, a abraçá-la, a amá-la, a sua doce Filippa,
limpa, macia e, embora vergonhoso, a permitir-lhe aliviar-se do desejo, o quarto
da casa de madame Seignier tornara-se um paraíso sonhado nas longas horas de espera
nas trincheiras.
Pequenina
e seca, madame Seignier usava o carrapito grisalho e o xaile preto dos lutos, o
luto do marido na Bélgica, dia 30 de Agosto de 1914, logo no começo,
e a
seguir, a 11 de Outubro, o luto da filha Ivette, do genro e do neto, mortos nos
bombardeamentos de Lille, ocupada desde então pelos alemães, tantos lutos que nem
dava para chorá-los. Os dois filhos homens combatiam na frente do Meuse e, num silêncio
vazio, madame Seignier ia cumprindo as tarefas domésticas.
Só então
reparou nas duas cartas colocadas na mesa do meio, notícias, ia ter notícias, o
alvoroço afastou-lhe o cansaço. Uma era da mãe e a outra da irmã. Abriu primeiro
esta, Maria Joana escrevia-lhe longas missivas carregadas de superlativos, como
era de seu feitio, e narrava pequenas ocorrências que a enchiam de prazer, [...] o Tião já lê o jornal e sabe imenso da
guerra, um dia destes escreve-te uma carta pela mão dele. O Zezinho tem uma paixão
pelo pónei que o avô lhe deu pelos anos! Tem sido difícil convencê-lo que não pode
trazê-lo para Lisboa. Dorme com a fotografia debaixo da almofada. Têm tantas saudades
vossas, coitadinhos. É tão diferente educar rapazes e meninas! Mas cá me vou arranjando
com a ajuda da Maman». In Luísa Beltrão, Moscas nos Olhos, Filippa na
Grande Guerra, Edição Glaciar, Lisboa, 2014, ISBN 978-989-877-600-6.
Cortesia
EGlaciar/JDACT