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Quem
sou? 24 de Março de 1897
«(…) Então, é esse o meu ofício? É bonito construir do
nada um acto notarial, forjar uma carta que parece verdadeira, elaborar uma
confissão comprometedora, criar um documento que levará alguém à perdição. O
poder da arte... Digno de me premiar com uma visita ao Café Anglais. Devo ter a memória no nariz, mas tenho a impressão de que
há séculos já não aspiro o perfume daquele menu: soufflés à la reine, filets de sole à la Vénitienne, escalopes de
turbot au gratin, selle de mouton purée bretonne... E como entrée: poulet à la portugaise ou páté chaud
de cailles ou homard à la parisienne, ou tudo junto, e, como plat de résistance, que sei eu, canetons à la rouennaise ou ortolans sur canapés
e, por entremet, aubergines à l’espagnole
asperges en branches, cassolettes princesse... Como vinho, eu não saberia,
talvez Château Margaux ou Château Latour ou Château Lafite, depende da safra.
E, para concluir, uma bombe glacée. A
culinária sempre me satisfez mais do que o sexo, talvez uma marca que os padres
me deixaram. Continuo sentindo uma espécie de nuvem, na mente, que me impede de
olhar para trás. Por que subitamente voltam a me aflorar à memória as minhas
fugas para o Bicerin vestido com o hábito do padre Bergamaschi? Eu tinha
esquecido completamente o padre Bergamaschi. Quem era? Gosto de deixar correr a
pena para onde o instinto me conduz. Segundo aquele doutor austríaco, eu
deveria chegar a um momento verdadeiramente doloroso para minha memória, o qual
explicaria porque de repente cancelei tantas coisas.
Ontem, dia que eu supunha terça-feira, 22
de Março, acordei como se soubesse muito bem quem era: o capitão Simonini, 67
anos feitos mas bem conservados (sou gordo o bastante para ser considerado aquilo que chamam um belo
homem) e havia assumido em França aquele título como lembrança do avô, aduzindo
vagos transcursos militares nas fileiras dos Mil garibaldinos, coisa que nesse
país, onde Garibaldi é mais estimado que na Itália, desfruta de certo
prestígio. Simone Simonini, nascido em Turim, de pai turinês e mãe francesa (ou
saboiana, mas poucos anos após o seu nascimento o reino da Sardenha cedeu a
Saboia à França). Ainda na cama, eu fantasiava... Dados os problemas que eu
tinha com os russos (os russos?), era melhor não aparecer nos meus restaurantes
preferidos. Poderia cozinhar algo eu mesmo. Trabalhar algumas horas, preparando
uma iguaria, relaxa-me. Por exemplo, umas côtes
de veau Foyot: carne com ao menos quatro centímetros de espessura, porção
para dois, claro, duas cebolas de tamanho médio, 50 gramas de miolo de pão, 75
de gruyère ralado, 50 de manteiga;
esfarela-se e torra-se o miolo até o transformar em farinha de rosca, que será
misturada com o gruyère; depois descascam-se
e picam as cebolas, derretem-se 40 gramas de manteiga numa panelinha, enquanto em outra refogam-se
suavemente as cebolas com a manteiga restante; cobre-se o fundo de um prato com
metade das cebolas, tempera-se com sal e pimenta a carne, que é colocada no
prato e guarnecida lateralmente com o restante das cebolas, envolve-se tudo com
uma primeira camada de farinha de rosca e queijo, fazendo a carne aderir bem ao
fundo do prato, deixando escorrer a manteiga derretida e esmagando levemente
com a mão; coloca-se outra camada de farinha de rosca e queijo até formar uma
espécie de cúpula e acrescentando manteiga derretida; borrifa-se tudo com vinho
branco e caldo, sem ultrapassar a metade da altura da carne. Coloca-se o prato
no forno por cerca de meia hora, continuando a molhar com o vinho e o caldo.
Acompanhar com couve-flor sautée.
Exige um pouco de tempo, mas os prazeres
da cozinha começam antes dos prazeres do palato, e preparar significa
pregustar, como eu estava fazendo, ainda espreguiçando-me na cama. Os tolos precisam
ter sob as cobertas uma mulher, ou um rapazinho, para não se sentirem sós. Não
sabem que a água na boca é melhor do que uma erecção. Eu tinha em casa quase
tudo, menos o gruyère e a carne. Para
a carne, se fosse outro dia, haveria o açougue da place Maubert, mas, sei lá
por quê, às terças-feiras ele não abre. Eu conhecia outro, a 200 metros de
distância, no boulevard Saint-Germain, e um breve passeio não me faria mal.
Vesti-me e, antes de sair, diante do espelho acima da bacia, apliquei-me o
costumeiro bigode preto e minha bela barba. Em seguida, coloquei a peruca e
penteei-a repartida ao meio, humedecendo levemente o pente com água.
Agasalhei-me com o redingote e meti no bolsinho do colete o relógio de prata
com a corrente bem à vista. Para parecer um capitão reformado, eu gosto,
enquanto falo, de brincar com uma
caixinha de tartaruga, cheia de losangos de alcaçuz e, no interior da tampa, o
retrato de uma mulher feia mas bem-vestida, sem dúvida uma querida defunta». In
Umberto Eco, O Cemitério de Praga, 2010, tradução de Joana Angélica Melo,
ePUBr, Biblioteca Digital Brasileira, Editora Record, Rio de Janeiro, 2011,
ISBN 978-850-109-284-7.
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