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O
mistério da Foz
«(…)
Mas como poderia ele ter ânimo? O negócio corria mal, definhava, sem passantes
nem residentes. Às vezes os marinheiros e passageiros dos navios que fundeavam
na barra, acorriam a fazer alguma despesa, um vinho quente, uma empada de
galinha, uma broa de Avintes, mas há quatro ou cinco dias que a estalagem não via
um único cliente, para amostra. Numa tal escassez não havia ânimo que
resistisse e ele encaminhou-se em passo lento, vencido, para a porta da sala de
jantar, atraído pelos estalidos longínquos da lenha a crepitar no fogão da
cozinha e pelo cheiro reconfortante da sopa de legumes, magros consolos a que
deitava mão para esquecer o desalento. E foi ao entrar na divisão que, olhando
através da janela do fundo, viu a nuvem de pó que rolava, veloz, na estrada paralela
ao rio. Olha... Alguém que vai cheio de pressa para o Porto, comentou alto,
virando-se para a mulher que parara no vestíbulo ainda com a roupa nos braços. Mas
Adélia não reagiu. Mantinha o olhar fixo nas camisas e nas saias, como se
estivesse a examiná-las palmo a palmo e limitou-se a encolher os ombros.
Desacompanhado, Sátiro Costa voltou a olhar lá para fora no preciso instante em
que a carruagem inflectiu à esquerda, tomando o estreito caminho que conduzia à
sua estalagem. Com o coração em sobressalto, o estalajadeiro rodou sobre si
próprio, galgou o vestíbulo num passo inesperadamente lesto e, para melhor
acolher aquela sorte que lhe caía do céu, abriu de par em par a porta da
estalagem. Depois, vendo chegar a carruagem, disse repetidas vezes ao vosso
dispor, apesar de saber que a sua voz hospitaleira era engolida pelo troar
arrastado e metálico do rodar do veículo e pelos berros do cocheiro: ôôoo! Ôôôoo!
O
homem puxava as rédeas com um gesto enérgico, pregando as mãos ao peito e
inclinando o tronco para trás, num enorme esforço para suster a corrida dos
cavalos. Ôôôooo..., repetiu quando a carruagem se imobilizou a escassos passos
do estalajadeiro num ranger de freios, madeiras e tirantes. Pairou, então,
sobre a Estalagem Costa um silêncio expectante, prenunciador de novidades, cortado
apenas pelo resfolegar cansado dos animais. Depois, o cocheiro saltou em terra
e a portinhola da carruagem abriu-se, deixando passar um homem alto, com farto
cabelo louro e uma pêra bem cuidada. Teria à roda de trinta e cinco anos, um
olhar directo, agudo, um olhar de águia, e um porte altivo. Vestia uma
sobrecasaca azul-marinho, de bom corte, e o estalajadeiro percebeu pela
indumentária e pela postura que estava perante alguém de posses e de boa
criação: um homem habituado a mandar.
O
passageiro desceu devagar e de forma majestosa os dois estribos que o separavam
do chão, olhando para a estrada que tinha acabado de percorrer. Após um breve
momento de observação do que o rodeava, sacudiu a poeirada que pairava no ar e,
virando-se para trás, esticou a mão para dentro da carruagem, ajudando outra pessoa
a sair. Era uma mulher de estatura mediana e figura delgada e graciosa. Ainda
que viesse parcialmente velada por um grande chapéu, percebia-se que era mais
nova do que o companheiro de viagem, sua irmã ou filha, talvez. Teria uns vinte
anos, quando muito, e uma pele muito suave e branca que contrastava com o cabelo
de um preto brilhante e profundo. Uma bela mulher, sem dúvida, de colo alto,
pescoço alongado e mãos pequenas. Os seus olhos doces, realçados por longas
pestanas, fixaram-se por momentos no estalajadeiro, mas o seu olhar parecia
toldado por uma vaga inquietação e logo se desviou. Quando desceu da carruagem
fê-lo com retraimento, como se receasse ser reconhecida ou como se temesse o
que ia encontrar. Sátiro Costa chamou os rapazes da estalagem para que
ajudassem com a bagagem e, de seguida, aproximou-se dos recém-chegados, repetindo,
em respeitosa curvatura: ao dispor de Vossas Excelências.
O
homem de cabelo louro não respondeu. Ficou a observar o cocheiro e os rapazes
que descarregavam o tejadilho da carruagem e colocavam rapidamente no chão
várias malas, caixas de madeira, sacos de lona cinzenta e três arcas pequenas.
Assim que o trabalho de descarga ficou concluído, o passageiro abriu a bolsa
que trazia à cintura e deu uma moeda ao cocheiro. Na quinta-feira quero-te aqui
às oito da manhã, sem falta, exigiu. Recebes o resto nessa altura. Muito bem,
senhor, respondeu o homem, descobrindo-se. Pode Vossa Senhoria ficar
descansado. O outro virou-lhe as costas e entrou na estalagem em passo
decidido, levando a jovem mulher pelo braço. À frente de ambos, o estalajadeiro
abria o caminho, andando às arrecuas e fazendo, de tempos a tempos,
pronunciadas mesuras. Os seus olhos, de novo iluminados, estavam fixos nos
recém-chegados, hipnotizando-os, seduzindo-os, agradecendo-lhes, em silêncio,
aquela inesperada preferência pela sua casa». In João Pedro Marques, O Estranho
Caso de Sebastião Moncada, Porto Editora, 2014, ISBN 978-972-004-495-2.
Cortesia
de PEditora/JDACT