quarta-feira, 20 de abril de 2016

O Estranho Caso de Sebastião Moncada. João Pedro Marques. «O homem de cabelo louro não respondeu. Ficou a observar o cocheiro e os rapazes que descarregavam o tejadilho da carruagem e colocavam rapidamente no chão várias malas…»

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O mistério da Foz
«(…) Mas como poderia ele ter ânimo? O negócio corria mal, definhava, sem passantes nem residentes. Às vezes os marinheiros e passageiros dos navios que fundeavam na barra, acorriam a fazer alguma despesa, um vinho quente, uma empada de galinha, uma broa de Avintes, mas há quatro ou cinco dias que a estalagem não via um único cliente, para amostra. Numa tal escassez não havia ânimo que resistisse e ele encaminhou-se em passo lento, vencido, para a porta da sala de jantar, atraído pelos estalidos longínquos da lenha a crepitar no fogão da cozinha e pelo cheiro reconfortante da sopa de legumes, magros consolos a que deitava mão para esquecer o desalento. E foi ao entrar na divisão que, olhando através da janela do fundo, viu a nuvem de pó que rolava, veloz, na estrada paralela ao rio. Olha... Alguém que vai cheio de pressa para o Porto, comentou alto, virando-se para a mulher que parara no vestíbulo ainda com a roupa nos braços. Mas Adélia não reagiu. Mantinha o olhar fixo nas camisas e nas saias, como se estivesse a examiná-las palmo a palmo e limitou-se a encolher os ombros. Desacompanhado, Sátiro Costa voltou a olhar lá para fora no preciso instante em que a carruagem inflectiu à esquerda, tomando o estreito caminho que conduzia à sua estalagem. Com o coração em sobressalto, o estalajadeiro rodou sobre si próprio, galgou o vestíbulo num passo inesperadamente lesto e, para melhor acolher aquela sorte que lhe caía do céu, abriu de par em par a porta da estalagem. Depois, vendo chegar a carruagem, disse repetidas vezes ao vosso dispor, apesar de saber que a sua voz hospitaleira era engolida pelo troar arrastado e metálico do rodar do veículo e pelos berros do cocheiro: ôôoo! Ôôôoo!
O homem puxava as rédeas com um gesto enérgico, pregando as mãos ao peito e inclinando o tronco para trás, num enorme esforço para suster a corrida dos cavalos. Ôôôooo..., repetiu quando a carruagem se imobilizou a escassos passos do estalajadeiro num ranger de freios, madeiras e tirantes. Pairou, então, sobre a Estalagem Costa um silêncio expectante, prenunciador de novidades, cortado apenas pelo resfolegar cansado dos animais. Depois, o cocheiro saltou em terra e a portinhola da carruagem abriu-se, deixando passar um homem alto, com farto cabelo louro e uma pêra bem cuidada. Teria à roda de trinta e cinco anos, um olhar directo, agudo, um olhar de águia, e um porte altivo. Vestia uma sobrecasaca azul-marinho, de bom corte, e o estalajadeiro percebeu pela indumentária e pela postura que estava perante alguém de posses e de boa criação: um homem habituado a mandar.
O passageiro desceu devagar e de forma majestosa os dois estribos que o separavam do chão, olhando para a estrada que tinha acabado de percorrer. Após um breve momento de observação do que o rodeava, sacudiu a poeirada que pairava no ar e, virando-se para trás, esticou a mão para dentro da carruagem, ajudando outra pessoa a sair. Era uma mulher de estatura mediana e figura delgada e graciosa. Ainda que viesse parcialmente velada por um grande chapéu, percebia-se que era mais nova do que o companheiro de viagem, sua irmã ou filha, talvez. Teria uns vinte anos, quando muito, e uma pele muito suave e branca que contrastava com o cabelo de um preto brilhante e profundo. Uma bela mulher, sem dúvida, de colo alto, pescoço alongado e mãos pequenas. Os seus olhos doces, realçados por longas pestanas, fixaram-se por momentos no estalajadeiro, mas o seu olhar parecia toldado por uma vaga inquietação e logo se desviou. Quando desceu da carruagem fê-lo com retraimento, como se receasse ser reconhecida ou como se temesse o que ia encontrar. Sátiro Costa chamou os rapazes da estalagem para que ajudassem com a bagagem e, de seguida, aproximou-se dos recém-chegados, repetindo, em respeitosa curvatura: ao dispor de Vossas Excelências.
O homem de cabelo louro não respondeu. Ficou a observar o cocheiro e os rapazes que descarregavam o tejadilho da carruagem e colocavam rapidamente no chão várias malas, caixas de madeira, sacos de lona cinzenta e três arcas pequenas. Assim que o trabalho de descarga ficou concluído, o passageiro abriu a bolsa que trazia à cintura e deu uma moeda ao cocheiro. Na quinta-feira quero-te aqui às oito da manhã, sem falta, exigiu. Recebes o resto nessa altura. Muito bem, senhor, respondeu o homem, descobrindo-se. Pode Vossa Senhoria ficar descansado. O outro virou-lhe as costas e entrou na estalagem em passo decidido, levando a jovem mulher pelo braço. À frente de ambos, o estalajadeiro abria o caminho, andando às arrecuas e fazendo, de tempos a tempos, pronunciadas mesuras. Os seus olhos, de novo iluminados, estavam fixos nos recém-chegados, hipnotizando-os, seduzindo-os, agradecendo-lhes, em silêncio, aquela inesperada preferência pela sua casa». In João Pedro Marques, O Estranho Caso de Sebastião Moncada, Porto Editora, 2014, ISBN 978-972-004-495-2.

Cortesia de PEditora/JDACT