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«(…) Maria penteou e
entrançou o cabelo de Joana, enquanto ela afagava o cabo de veludo vermelho da
escova da roupa, entregando-se às lembranças da sua amada Toledo, onde ansiava
chegar. Era segunda-feira e iam todos à igreja; de novo. Quantas vezes fomos à
igreja desde que chegámos? Eu digo-vos. Fomos duas vezes na quarta-feira, uma vez
na quinta, na sexta e no sábado. Ontem estivemos presentes no casamento de um
marquês qualquer e hoje, como regalo especial, tenho de assistir a uma missa
solene. E sempre na companhia destas mulheres idiotas. É todos os dias a mesma
coisa: ir à igreja, voltar e ficar a ouvir conversas idiotas, jantar com elas e
ouvir mais do mesmo. Estou tão farta de estar enfiada junto destas galinhas
cacarejantes. Atirou a escova ao chão e começou a espetar um dos seus alfinetes
com jóias numa almofada de alfinetes. Santo Deus, que atraso sem sentido, que
perda de tempo. Cada dia nos aproxima mais do Inverno. Maria terminara e Joana
estudou-se ao espelho, uma jovem orgulhosa num vestido de brocado verde-escuro
ao estilo francês. O forro vermelho que se via através das mangas golpeadas
condizia com o manto até aos pés e os sapatos de pele macia. Assentiu a sua
aprovação.
O bispo está à espera,
minha Senhora. Óptimo, manda-o então entrar. Vossa Majestade! Fechou a porta e
curvou-se. Ah, Fonseca, queria ver-vos o mais cedo possível. Ontem à noite não
dormi bem. Espero não ser eu o motivo e que não estejais zangada comigo por
causa de ontem.
Zangada? Provavelmente haveis-me salvado de ficar sufocada quando me
batestes nas costas. Nunca mais, mas nunca mais comerei aqueles malvados doces
franceses. Não, estou preocupada com a possibilidade de Luís e Filipe
conspirarem para esmagar Aragão, se a minha mãe morrer antes do meu pai. Tende
a certeza de que Filipe não pode assinar qualquer pacto com Luís. As Cortes de
Castela nunca poriam lá o nome dele. Mas não duvido de que Luís está a fazer os
impossíveis para extrair de Filipe todo o tipo de promessas e devíamos partir o
mais depressa possível. Orarei por uma partida em breve. Ámen! Talvez eu
ofereça a mesma oração. Se Deus não estiver distraído com uma congregação mais
preocupada com os mantos da moda e o facto de os coros da França e da Flandres
tencionarem ultrapassar-se mutuamente nas quantidades de rendas e no volume dos
seus hinos, talvez Ele ouça as minhas humildes preces. Fonseca abanou a cabeça.
Viria ela alguma vez a conformar-se como filha obediente da Igreja?
A missa foi como ela contara a Fonseca, o serviço praticamente ignorado.
A congregação estava mais interessada nas aparências que na oração e os coros
quase dilaceravam o ar na sua rivalidade. Só quando o serviço terminou é que
até Joana prestou alguma atenção ao que se estava a passar. Intrigou-a a
actividade na sua frente, ao fundo dos degraus do altar. Um jovem criado, que
transportava uma caixa de esmolas sobre uma almofada de veludo, aproximou-se do
rei, o qual colocou a sua oferta na caixa. Um dos seus cortesãos abriu, então,
a bolsa e passou algum dinheiro a Filipe. Este aceirou as moedas, curvou-se
perante o rei e deitou-as na caixa de esmolas. Joana observou primeiro a
expressão convencida no rosto de Luís e por fim o seu ingénuo marido, que mais
uma vez se deixava passar por um súbdito fiel. O criado atravessou para o seu
lado da igreja, parando diante da rainha. Esta voltou-se igualmente para uma
das suas damas, que abriu a bolsa e se voltou para Joana. Esta, porém, abanou a
cabeça, primeiro à dama de companhia e depois à rainha. Falou com um sorriso
nos lábios e a indignação na voz: se eu desejar deixar alguma coisa na caixa
dos pobres, assim farei. Não sou pobre, nem vossa criada. Se, e quando, fizer
uma oferta, será sempre a minha própria doação. Depois, tirou um dos brincos de
diamante e rubis, um presente de casamento de Filipe, e deixou-o cair na caixa
com um tinido. Os olhos da rainha semicerraram-se de fúria e silvou na sua
direcção por entredentes. Duquesa, é vosso dever obedecer-me! Como vos atreveis
a recusar? Senhora, como vos atreveis a presumir tal?, retorquiu Joana». In
Linda Carlino, That Other Joana, 2007, Joana, a Louca, Editorial Presença,
Lisboa, 2009, tradução de Isabel Nunes, ISBN 978-972-23-4231-5.
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