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Arredores
de Colónia. 1430
«(…)
Um rangido fez tremer o soalho aos seus pés. Uma viga havia cedido e as chamas
subiam com força em direção ao segundo piso. Olhou para a filha, pálida,
assustada. Tossia, engasgada pelo fumo que tudo cobria. Depois, olhou para a
esposa; parecia dormir tranquilamente e em paz na cama, por baixo do fumo
intenso que roçava o tecto e ia descendo. Pensou que ainda havia algum tempo.
Lançou um olhar em redor: o soalho podia resistir um pouco mais. Entre as
pranchas de madeira distinguia-se em baixo o resplendor das labaredas, mas não
parecia imediato o soçobro. Não havia tempo a perder. Ergueu a mulher e colocou-a
sobre o ombro. Segurou depois a menina pela mão e estacou no topo das escadas.
Ali, o espectáculo que se lhe apresentou obrigou-o a pensar. O fogo subia, degrau
a degrau, lento mas constante. Estás a fazer-me doer, papá. Só os olhos
assomavam por cima do lenço. Deu-se então conta da pressão que exercia com a
mão. Lamento, filha. Voltemos por um momento. Deixou de novo a mulher sobre o
leito e agachou-se até ficar à altura da pequena. Tinha os olhos vermelhos de
cansaço e do fumo. Temos de deixar aqui a mamã. Não posso levar as duas. As escadas
não aguentarão. Mas o fogo chegará à mamã e não a deixará sair. Não querida.
Voltarei logo e salvá-la-ei. Não te preocupes.
Não
esperou que respondesse. Ergueu a pequena para a colocar sobre o ombro, como
antes fizera com a mulher. Mas esta não se desprendia da mão da mãe. Precisou
de dar um puxão para as separar. A criança rompeu a chorar com mais força. As chamas
invadiam já as escadas. Uma língua de fogo avançava como um ser vivo, em
assaltos constantes. Tomou balanço e, sem pensar, saltou grande parte dos
degraus. Caiu sobre o chão de pedra. Uma dor muito forte na planta dos pés
fê-lo recuar. Não largou a filha. A casa havia-se tornado um inferno. O fumo e
as chamas não o deixavam ver qualquer espaço livre por onde fugir. Na sua
frente, a arca de madeira com mantas estava intacta. Deixou a filha no chão. A
pequena, desfalecida e meio asfixiada, balbuciava palavras desconexas. Ao abrir
o móvel, sentiu como o fogo se agarrava à palma das mãos; o ferro das
dobradiças da arca recebia o calor do incêndio e fechava-o como a um tesouro. Incapaz
de agir, reparou que as pernas se dobravam. Estava quase a render-se quando o
choro abafado da criança o fez voltar a si.
Uma
vez mais, colocou a filha sobre ele com um abraço, envolveu uma das mantas por
cima com o cuidado de proteger os dois, agarrou-se firmemente ao cobertor e
correu; correu até à entrada, ignorando as chamas que os envolviam. Arremeteu
contra a porta e esta cedeu facilmente, já quase desfeita. Ao atravessá-la,
saiu aos tropeções e caiu aos pés de todos os vizinhos, que tentavam
organizar-se para apagar o incêndio. Muitos levavam já os seus baldes de
madeira. Desorientado com a visão de toda aquela gente amontoada em seu redor e
cm as tochas que se aproximavam e se afastavam na noite húmida, abraçou-se com
força à sua pequena. A filha começou a tremer, uma vez que se viu a salvo, mas
ainda teve tempo para soltar um lamento: mamã...
O
pai pôs-se de pé, como que impelido por uma mola. Voltou a envolver-se na manta
e atravessou as chamas que tinham substituído a porta de madeira. Cego pela
imperiosa necessidade de salvar a esposa, não via o perigo terrível em que se internava.
Atrás ficavam as visões alucinadas dos vizinhos e dos prantos das mulheres;
todas se esforçavam por dar atenção à filha. Quando chegou ao interior, só
sentiu o fogo. O ar quente quase irrespirável invadia-o todo. Tinha de
encontrar maneira de chegar aonde estava a esposa e salvá-la. O terror
apoderou-se dele: as escadas tinham desaparecido por completo. Um buraco negro
abria-se no tecto e o fumo subia como que absorvido por uma chaminé. Volveu o
olhar para o fogo e pareceu-lhe ver que as chamas eram formadas por semblantes luminosos
que o observavam e se dirigiam a ele, que o increpavam e queriam apanhá-lo, rostos
que engoliam tudo, desmembrando o que fora o seu lar durante tantos anos». In
Eduardo Roca, A Oficina dos Livros Proibidos, O Conhecimento pode Mudar o
Mundo, 2011, tradução de Óscar Mascarenhas, Marcador Editora, 2013, ISBN
978-989-754-015-8.
Cortesia
de MarcadorE/JDACT