Uma
Constelação Única
«(…)
Em Abril de 1476, Leonardo foi denunciado, com mais três homens, numa nota
anónima enviada às autoridades alegando que ele praticara actos de sodomia com
um jovem de nome Jacopo Saltarelli. Em consequência, Leonardo foi formalmente
acusado, e quase de certeza passou algum tempo na cadeia, antes de ser
libertado para ser julgado daí a dois meses. As acusações acabaram por ser
retiradas, depois de uma palavra de Lourenço, o Magnífico, às autoridades. A acusação contra Leonardo parece ter sido
congeminada por alguma das famílias poderosas que se opunham ao governo de
Medici, numa tentativa para desacreditar Lourenço e o seu círculo. Foi um
episódio profundamente humilhante, no entanto, o único indício que temos dos
sentimentos de Leonardo é enviesado e engenhoso, no seu estilo bem
característico. Entre os seus desenhos deste período, conta-se o esboço de uma
das suas primeiras invenções, o desenho de um dispositivo para tirar dos
gonzos pelo lado de dentro uma porta da prisão, um desenho poderoso e
elaborado de forma meticulosa.
Só
podemos imaginá-lo na sua roupa elegante mas toda suja, sentado na escuridão da
sua cela e no meio da palha malcheirosa e infestada de bicharada, a montar
penosamente na sua mente uma máquina que lhe teria permitido fugir. Florença
pode ter sido o epicentro inicial do Renascimento, mas as pequenas ondas dos
seus efeitos começavam já a espalhar-se para bem longe, além do mundo da arte,
da literatura e da filosofia, e à invadir a geometria, a astronomia, a
exploração e até a tecnologia. Porém, também aqui se mantinha o elemento
poético que caracteriza muito do empreendimento do Renascimento. Algum tempo
depois de 1480, Leonardo conheceu e começou a estudar com o astrónomo e
geógrafo Paolo Toscanelli, sobre quem Poliziano escreveu num Poema em latim: Paulus cruza a terra com os pés e o céu
estrelado com a mente, ambos mortais e imortais em simultâneo.
Anteriormente, em 1474, Toscanelli desenhara um mapa-múndi em forma de globo,
indicando que um navio que navegasse em direcção a ocidente acabaria por chegar
à Índia. O mapa de Toscanelli inspiraria Colombo a tentar esta viagem. Leonardo
adquiriria também um destes mapas e, anos mais tarde, inclui-lo-ia nos seus
pertences mais estimados, referindo-se-lhe no seu caderno de apontamentos como o
meu mapa-múndi que está em poder de Giovanni Benci.
Em 1477,
Leonardo, então com 24 anos, tinha deixado o atelier de Verrocchio para criar o seu. A influência de Lourenço, o Magnífico, permitiu certamente ao jovem
artista receber algumas encomendas importantes, particularmente o seu Retrato de Ginevra de Benci, a primeira obra
em que ele começa a demonstrar uma visão original. Este quadro inclui umas quantas
novidades impressionantes: a pessoa que está sentada olha, impassível, para
fora do retrato, e a paisagem que lhe serve de fundo é ao mesmo tempo realista e
psicologicamente metafórica. A cabeça está encerrada na folhagem escura e espinhosa
de um zimbro, árvore que, no italiano da época, se designava como ginépro ou genévre, um trocadilho à volta do nome da mulher, assim como uma insinuação
subtil quanto ao seu carácter. Atrás dela, um rio profundo, tranquilo, afasta-se
em direção a colinas distantes e enevoadas. O mais impressionante de tudo é a pele
transparente do rosto da mulher e a sua expressão enigmática de pálpebras semicerradas,
sugerindo uma personalidade melancólica, obstinada. É muito mais do que o retrato
de uma mulher jovem e bela: é uma análise profunda do seu carácter». In
Paul Strathern, O Artista, o Filósofo e o Guerreiro, Da Vinci, Maquiavel e
Bórgia e o Mundo que eles Criaram, Clube do Autor, Lisboa, 2009, ISBN
978-989-724-010-2.
Cortesia
do CAutor/JDACT