«(…) Desde o Verão de 1945, a única vez
que lá estive, não se passa ano que não intente voltar. Mas por uma razão ou
outra a visita vai sendo adiada, mesmo que não haja agora o receio do mau
caminho. Da nossa aldeia para lá ainda se enrosca pelas vertentes o secular
carreiro de cabras, mas pelo que oiço dizer, indo de Carviçais, o caminho está
plano, e guiando com cuidado até se pode passar de automóvel. Custa a crer, mas
a verdade é que sempre encontro desculpas para o não ir verificar, talvez porque
inconscientemente quero guardar intactas as imagens da memória longínqua. Os
moradores abandonaram as casas dezenas de anos atrás, quando a lavoura deixou
de compensar. Tirante a quinta das Arcas, a meia encosta, também já despovoada,
mas onde por enquanto ainda tratam das oliveiras e dos amendoais, o que eu
conheci como searas são hoje matos. No meu tempo de criança a brisa fazia
ondular num ritmo hipnótico as ladeiras plantadas de cereal, e não era preciso
muita fantasia para imaginar um dedo gigantesco a passar e repassar sobre elas,
dando-lhes vida. O dedo de Deus. Agora, mais bastos que no passado, os
pinheiros estendem-se à toa pelos montes. Vistas de longe, as suas copas parecem
um tapete verde lançado sobre a terra estéril, onde os silvedos, as giestas, as
estevas, os carrascos e cem outros arbustos daninhos crescem tão densos que só
as fragas maiores não desapareceram ainda sob eles.
A paisagem tornou-se agreste como a de um
deserto e, ao contrário de antigamente, quando por toda a parte havia homens na
lida da terra, hoje raro se vê alguém a cavar ou a lavrar. Os burros e os mulos
são poucos. Os bois desapareceram. Rebanho não há nenhum. A linha do comboio
fechou. Nas terras mais próximas da estrada, compradas por dez réis de mel
coado aos pobres que emigraram, ou aos velhos que as não podiam trabalhar, a
fábrica do papel mandou plantar eucaliptos em filas intermináveis. E essas
filas regulares de árvores calibradas, cuidadas, duma monotonia industrial, idênticas
no porte como frangos de aviário, prenunciam um mundo novo, uniforme e
controlado, fazem contraste ao passado que em torno delas agoniza lentamente.
O meu avô José Maria nasceu no Cabeço.
Embora eu guarde nítidas outras memórias mais remotas, dele, que me ensinou a
ler e a escrever, e faleceu quando eu passava dos cinco anos, só tenho recordações
esparsas. A do grande bigode encaracolado. A de uma farda de gala de veludo
azul com botões dourados e alamares. A espada. Mas o seu rosto só o conheço das
fotografias. Da sua voz. dos seus modos, do porte, nada ficou. Quase tudo o que
sei dele ouvi-o contar. Algumas vezes em versões contraditórias ou com detalhes
diferentes. Outras vezes por gente que lhe tinha querido bem e passava por alto
o seu génio iroso, as suas imprevisíveis mudanças de humor, o feitio severo que
outros lhe criticavam. Ouvi dizer também que era bom, cumpridor, fiel aos seus amigos
e aos ideais republicanos, o nome que então se dava ao socialismo. Deixou fama
como caçador. O resto que sei catei-o em papéis soltos, ou nos cadernos de
papel esverdeado e pautado que ainda guardo e que ele usava para anotações. No
topo de cada página lê-se em maiúsculas: Alfândega do Porto. Na margem
esquerda, numa linha vertical: Remessa de documentos para a sede. Com a
sua mão a guiar o meu dedo, foram essas as primeiras palavras que me ensinou a soletrar.
No Cabeço a vida era ritmada pelos
afazeres do dia, sempre os mesmos, comandada pela tirânica sucessão das sementeiras
e das colheitas. Vida dura. Por única distração havia a mudança do tempo. Muito
longe, onde diziam que ficava o mar, viam-se em montões as nuvens que trariam a
chuva do dia seguinte. Sobre a serra de Bornes, como que a dois passos, nasciam
as trovoadas que depois estouravam mais secas que tiros de canhão e cujo eco se
repetia e ricocheteava nas encostas, prenunciando catástrofes». In
José Rentes de Carvalho, Ernestina, 2001, Quetzal Editores, Lisboa, 2009, 2014,
ISBN 978-989-722-171-2.
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