domingo, 17 de abril de 2016

A Condessa Cercada. Isabel. Pedro Torres. «De pouco me vale sofrer por diabos perdidos como estes, não é?, perguntou Abrahem, puxando a rapariga para o seu lado com delicadeza, sorridente, fixando o olhar nas suas íris negras, vibrantes entre o fascínio e o temor»

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«(…) Quem vem lá?, perguntou uma voz exageradamente grossa do meio das almofadas, onde as sombras apenas podiam insinuar a presença dos corpos acomodados. Aí está ele, o nosso grande homem!, disse outra voz masculina, um pouco mais à direita. Anda, vem juntar-te a nós! Já tinha dito que talvez não aparecesses por cá esta semana, mas afinal retiro o que disse… O Alcaide nunca deixa o seu povo, disse o primeiro. Vem, senta-te aqui entre nós, porque quero apresentar-te esta linda jovem, recém-chegada à colmeia! Como é mesmo o teu nome? Junto à porta, Abrahem sorria, observando os amigos de braço apoiado ao longo do umbral da porta, movendo a cabeça em negação num falso gesto de censura. Era ainda jovem, de porte atlético e um rosto belo e anguloso, maçãs salientes e nariz largo e chato, encimando uns lábios carnudos e de sorriso fácil e caloroso, iluminado pelos olhos negros e rasgados, de muito agrado para o sexo oposto. Eu a pensar encontrar-vos na mesquita, nas vossas orações, e afinal deparo-me com esta cena de depravação... Não podem imaginar quanta tristeza me inspiram, disse, ao mesmo tempo que desapertava os cordões ao pescoço do grande manto pardo e enfeitado de motivos arabescos dourados que trazia às costas, entregando-o a um lacaio ainda rapaz, encarregue de o guardar. Instalados, os amigos observavam-no com inocente inveja, abraçados às famosas abelhas da colmeia, as quais acariciavam com gentileza. Eram jovens raparigas, envoltas em lenços de seda coloridos e repletas de colares em torno do pescoço e pulseiras entrelaçadas nos pulsos e tornozelos, adornadas por pequenas medalhas e moedas de reinos distantes, oferecidas por clientes abastados que passavam pela cidade em grandes caravanas de comércio. E sempre que se moviam com os seus gestos arrastados e dolentes, um chocalhar de metal acompanhava-as, como se fosse parte da sua pele a amálgama de metais preciosos que usavam com vaidade. Eram as abelhas ricas, porque na sala dos nobres, dizia-se em jeito de piada, era onde se encontrava o melhor mel.
Espreguiçando-se languidamente, Abrahem aproximou-se dos dois amigos e das três mulheres, e com um gesto de abandono deixou-se cair entre eles, satisfeito. Logo a rapariga nova se aproximava, caminhando de joelhos como um felino e lançando-lhe um olhar fixo e aceso pelas suas pestanas enormes, ao mesmo tempo que procurava, com o braço esticado, sentir o toque da mão do homem em cujos dedos compridos reluziam os anéis. Pela forma hesitante e tensa como executava os seus movimentos, tornava-se clara a sua falta de experiência, bem como o seu receio em desagradar ao mulai importante do qual, advertira-a o patrão com insistência, tinha que cuidar com um esmero exacerbado porque se tratava de nada menos que o alcaide da cidade. E balouçando-se, provocadora, os seus cabelos negros e soltos caíam sobre o kaftan verde do cliente, da cor do mármore italiano e debruado a fio de ouro junto ao colarinho, aninhando a cabeça pequena sobre o ventre do mulai que semicerrava os olhos e a contemplava, bem impressionado. E como uma gata dócil e submissa, ronronando ao toque e calor emanado pelo corpo do seu senhor, assim Abrahem a acariciava, passando os dedos por entre os cabelos suaves e tocados por um perfume adocicado. E ao contrário das outras mulheres abraçadas aos amigos, a quem a idade e o ócio de uma vida sedentária e repleta de prazeres na comida e na bebida haviam trazido os excessos também às formas do corpo, a jovem mostrava-se ainda na plenitude da frescura, magnífica na sua pele lisa, nos dentinhos brancos e de sorriso simples, no desenho da silhueta, ágil e crepitante.
Já viste, Ahmed?, perguntou o amigo sentado ao lado esquerdo de Abrahem, soerguendo-se a custo das almofadas, preso no pescoço pelos braços enleados da mulher de rosto redondo e lábios cheios e carmim, que se recusava a largá-lo. Não há como a tranquilidade de um gato para afastar a tristeza do coração de um homem! Ah, nesse coração de que falas não há tristeza que pegue, nem amor que perdure, respondeu o outro, com uma palmada amigável nas costas do alcaide. Os dois eram filhos de mercadores ricos que percorriam todo o Magrebe com as suas longas cáfilas, carregadas de todos os produtos formidáveis que naqueles anos surgiam, vindas quer do coração africano, quer do oriente. Perfumes, especiarias, armas e marfim, de tudo os seus pais negociavam, numa actividade segura e extremamente rentável, a qual os rapazes logo tomaram, chegada a idade adulta. Toda a vida habituados aos melhores produtos, os dois eram agora eles próprios senhores das suas caravanas, e nas viagens constantes travavam inúmeras amizades, e assim tinha acontecido com o alcaide de Xexuão. Os três eram da mesma idade, e partilhavam o gosto pelas festas nocturnas, pela música e pelos excessos a que se entregavam secretamente na famosa colmeia, conhecida desde Ceuta até Marraquexe. De pouco me vale sofrer por diabos perdidos como estes, não é?, perguntou Abrahem, puxando a rapariga para o seu lado com delicadeza, sorridente, fixando o olhar nas suas íris negras, vibrantes entre o fascínio e o temor. E também ela tentava sorrir-lhe para o agradar, porém não tinha qualquer sucesso, pois os seus lábios cerravam-se contristados, e o seu corpo permanecia rígido e curioso, como um pequeno animal acossado pela presa, pressentindo o seu ataque. Ah, pobre pequena, para quê tanto medo? Podes estar descansada, que não te vou tratar como estes brutos, cujas mãos servem apenas para lidar com camelos... Olha para isto, Ahmed, disse o mercador, pegando numa ponta do kaftan de Abrahem. O senhor alcaide desdenha agora, mas não se queixa quando veste tecidos desta qualidade. E a categoria daqueles sapatos, hã? Couro mais macio que esse, nem no paraíso. Ora, disse, Abrahem com um encolher de ombros, esticando as pernas para observar vaidoso a elegância dos seus sapatos bicudos. Para pequenos luxos destes não preciso das vossas caravanas malcheirosas para nada. Sei com quem negociar para ter tudo o que quero, e não preciso de esperar três semanas». In Pedro L. Torres, Isabel, A Condessa Cercada, Saída de Emergência, 2014, ISBN 978-989-637-660-4.

Cortesia de SEmergência/JDACT