«(…)
Esta sou eu, a menina de cinco anos.
sentada em cima da arca tesouro, de rosto branco como mármore e olhos
azuis escancarados de medo, recusando tremer a morder os lábios para não voltar
a chorar. Esta sou eu, concebida num acampamento por pais que são rivais e
amantes, nascida num momento intercalado entre duas batalhas, num Inverno de
cheias torrenciais, educada por uma mulher forte que usara armadura, em campanha
durante toda a minha infância, destinada a lutar pelo meu lugar no mundo, lutar
pela minha fé contra outra, lutar pela minha palavra contra a de outro: nascida
para lutar pelo meu nome. pela minha fé e pelo meu trono. Sou Catarina.
Princesa da Espanha, filha dos dois maiores monarcas que o mundo alguma vez conheceu:
Isabel de Castela e Fernando de Aragão. Os seus nomes são temidos do Cairo a Bagdade,
a Constantinopla e á Índia e mais
além. por todos os Mouros, em todas as suas inúmeras nações: turcos, indianos, chineses; os
nossos rivais, admiradores, inimigos até á morte. Os nomes dos meus pais são
abençoados pelo papa como os mais importantes reis a defenderem a fé contra o
poder do Islão, são os mais importantes cruzados da Cristandade, assim como os
primeiros reis da Espanha; e eu sou a sua filha mais nova. Catarina. Princesa
de Gales, e serei Rainha da Inglaterra. Desde os três anos estou prometida em
casamento ao príncipe Artur, filho do rei Henrique da Inglaterra, e quando
fizer quinze anos, navegarei para o seu país num belo navio, com o meu estandarte
desfraldado no topo do mastro, e serei sua mulher e depois sua rainha. O seu
país é rico e fértil, repleto de
fontes e o som de água a correr, pleno de frutas mornas e perfumado por flores,
e será o meu país, tomarei conta dele. Tudo isto foi acordado praticamente
desde o meu nascimento, sempre soube que seria assim: e apesar de lamentar deixar
a minha mãe e a minha casa. afinal, nasci princesa, destinada a ser rainha, e
sei qual é o meu dever. Sou uma criança de convicções absolutas, sei que serei
Rainha da Inglaterra porque é a vontade de Deus, e a ordem da minha mãe. Acredito,
tal como toda a gente no meu mundo, que Deus e a minha mãe são geralmente da
mesma opinião: e a sua vontade concretiza-se sempre.
De manhã, o acampamento fora de
Granada era uma confusão húmida de cortinas chamuscadas, tendas destruídas,
pilhas de forragem fumegantes, tudo destruído por uma vela colocada sem cuidado,
Não existia alternativa senão a retirada. O exército espanhol cavalgara com
todo o orgulho para montar cerco ao último reino dos Mouros na Espanha, e tudo
fora destruído pelo fogo. Teria de voltar para trás, para se reagrupar. Não,
não vamos recuar, ordenou Isabel da Espanha. Os generais, convocados para uma
reunião de emergência sob um toldo ligeiramente queimado, afastavam as moscas
que esvoaçavam em volta do acampamento, a banquetearem-se com os destroços. Vossa
Majestade, por esta estação, perdemos, disse-lhe calmamente um dos generais. Não
é uma questão de orgulho nem de forca de vontade. Não temos tendas, não temos
abrigo, fomos destruídos pela má sorte. Temos de voltar e abastecer-nos
novamente, voltar a montar o cerco. O vosso marido, acenou com a cabeça para o
homem moreno e bonito que estava ligeiramente à parte do grupo, a ouvir, sabe
que é assim. Todos o sabemos. Voltaremos a montar o cerco, eles não nos
derrotarão. Mas um bom general sabe quando tem de retirar. Todos os homens
assentiram com a cabeça. O senso comum ditava que nada poderia ser feito além
de libertar os Mouros de
Granada do seu cerco durante esta estação. A batalha continuaria. Já durava há
sete séculos. Cada ano vira gerações de reis cristãos aumentar as suas terras,
em detrimento dos Mouros. Cada batalha fizera recuar um pouco mais para sul o,
durante muito tempo, respeitado domínio muçulmano de al-Andalus. Mais um
ano, não faria qualquer diferença. A menina, encostada a um poste húmido de uma
tenda que cheirava a cinza molhada, observava a expressão serena da mãe. Nunca
se alterou.
De facto, é uma questão de orgulho, corrigiu-o. Estamos a lutar
contra um inimigo que conhece o orgulho como nenhum outro. Se fugirmos nas
nossas roupas chamuscadas, com as carpetes queimadas enroladas debaixo do
braço, vão rir-se até ao al-Yanna, o seu paraíso. Não posso permiti-lo. Mas,
acima de tudo: é a vontade de Deus que combatamos os Mouros, é a vontade de
Deus que avancemos, Não é a vontade de Deus que recuemos. Por isso, temos de avançar.
O pai da criança voltou a cabeça com um sorriso espantado, mas não manifestou
opinião contrária. Quando os generais olharam para ele, fez um pequeno gesto
com a mão. A rainha tem razão, afirmou. A rainha tem sempre razão. - Mas não
temos tendas, não temos acampamento! Ele dirigiu a questão à rainha. O que
pensais? Construímos um acampamento, decidiu. Vossa Majestade, destruímos tudo
o que existia nas várias milhas circundantes. Atrevo-me a dizer que nem sequer
um kamiz conseguiríamos costurar para a Princesa de Gales. Não temos tecido.
Não temos tela. Não há cursos de água, não há colheitas nos campos. Rebentamos
os canais e colhemos as culturas. Acabamos com tudo; mas somos nós que estamos
destruídos. Construímos em pedra. Presumo que tenhamos pedra? O rei disfarçou
uma breve gargalhada com um som de quem limpava a garganta. Estamos rodeados
por uma planície de rochas áridas, meu amor, afirmou. Se há algo que temos, é
pedra. Então, construiremos, não um acampamento, mas uma cidade de pedra. Não é
possível fazê-lo. Ela voltou-se para o marido. Vai ser feito, disse. É a
vontade de Deus e a minha. Ele acenou com a cabeça. Vai ser feito! Lançou-lhe
um sorriso rápido e cúmplice. É meu dever velar para que a vontade de Deus seja
satisfeita; e meu prazer reforçar a vossa». In Philippa Gregory, Catarina de
Aragão, A Princesa Determinada, Livraria Civilização Editora, 2006, ISBN
978-972-262-455-8.
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