jdact
Com uns pais assim, dona Leonor de Áustria
saiu muito boa
«(…) Não tardou a tomar
conhecimento do que se passava: o príncipe
tinha uma amiga, muito nobre e formosa. Como uma leoa foi-se à casa da amiga
[de Filipe) e dizem tê-la ferido e maltratado e mandado cortar-lhe os cabelos
pela raiz do couro. Ainda assim, não foi por ser bruta que ganhou o afecto
do marido. O cronista diz até que Filipe, O
Belo, lhe bateu, agressão que, a acreditar no que se disse, terá aumentado
os desequilíbrios mentais da princesa. E lá vem mais uma filha, em 1505, dona
Maria, fruto de amores repartidos por tabefes e traições. Como muitas vezes os
negócios familiares superam os sentimentos, em 1506, tudo se apaziguou quando
Filipe e dona Joana viajaram de novo para Espanha com a intenção de reinarem em
coligação com Fernando de Aragão, pai de madame, já um tanto a caminho da morte.
Será a partir da deslocação dos
pais a Espanha, que dona Leonor de Áustria perderá o pouco contacto que tivera
com eles. O pai morrerá nesse ano, em 25 de Setembro, ficando a mãe em Espanha a
desfazer-se em lágrimas e a tonificar a loucura. E ficava bem! Já não precisava
de ir atrás do marido, na tumba estava bem guardado, não havia mulher que lho
disputasse. Entretinha-se a passear o ataúde por Espanha, uma repetição do que
Pedro I fez com dona Inês de Castro, pois tal como o rei português, também ela mandou
desenterrar o marido para lhe fazer as festas que em vivo não lhe foram
permitidas. Nem o facto de ter deixado quatro criancinhas a crescer na Flandres
a fez voltar. Além disso, Filipe deixara-lhe o ventre a fazer contas: Catarina
nasceria em 14 de Janeiro de 1507. Sobre este nascimento todos estamos de
acordo. Dona Joana fez bem em gerá-la, pois a menina seria rainha de Portugal
por muitos anos.
Dona Leonor perdera o pai, a mãe
estava longe, mas era bela, rica e culta, de uma das famílias mais prestigiadas
da Europa, e assim não faltaria quem lhe quisesse fazer companhia. Para
começar, e antes do primeiro casamento, teve os seguintes pretendentes: Henrique
VIII de Inglaterra, não se concretizando o casório por o então príncipe
Henrique, depois da morte do irmão, se achar à frente dos destinos britânicos,
casando com a própria cunhada, dona Catarina de Aragão, tia de dona Leonor.
Deste casamento a princesa safou-se de boa, dado o curriculum assassino do rei inglês. Seguiram-se-lhe Luís XII de
França; Francisco, senhor da Casa de Valois-Angoulême antes de ser rei de
França; Segismundo da Polónia; o duque da Lorena, todos por inspiração política
e conveniência dinástica, mais Federico do Palatinado, por quem parece ter-se
apaixonado, trocando com ele cartas muito mais afectuosas do que as simples
mensagens epistolares, comuns entre príncipes. Neste caso, o futuro imperador
Carlos V não achou graça aos amores da irmã, mesmo platónicos que fossem, exigindo
que jurassem só haver cartas entre os dois, nada de outros vínculos
irremediavelmente comprometedores, expulsando de seguida da corte o Federico,
não fosse assaltar-lhe o património que tinha bem guardado para o príncipe João
de Portugal, filho de Manuel I. Mas a questão permanece. Quem não quereria ter
no seu leito a mais disputada dama da Renascença? Se era bela, tanto melhor,
até podia não ser, isso não teria grande importância para o fim em vista. Mas
era. Este pormenor, que em princípio poderia trazer-lhe felicidade, acabou por lhe
determinar uma vida de grande adversidade.
De
Malines a Espanha, com Ida para Portugal
Quando
o pai de dona Leonor faleceu, tinha a infanta oito anos. Era a filha mais
velha, contudo estava fora da sucessão da Casa de Habsburgo, porque havia um
filho varão, o possuidor de tudo quanto o pai deixara, incluindo o destino dos irmãos.
O príncipe Carlos, com seis anos apenas, herdava do pai a Flandres, um conjunto
de ducados e condados sem fim, integrando a Holanda, a Bélgica e parte da
França. Herdaria também o título de Imperador do Sacro Império
Romano-Germânico, que lhe deixaria o avô paterno, em 1520, por assim dizer
quase a totalidade da Alemanha que hoje conhecemos, a Áustria e vastas regiões
da Itália. Da mãe herdaria Castela e Aragão, um eufemismo regional que
significava toda a Espanha, os vários reinos que possuía em Itália, mais as
possessões ultramarinas da América Central. Princesa mais recatada não haveria.
Quase a fazer os dezanove anos, dona Leonor veio pela primeira vez a Espanha
para acompanhar o irmão Carlos, muito requisitado pela aristocracia castelhana,
que o queria a governar o país». In Jorge Sousa Correia, A Traição de D
Manuel I, Clube do Autor, Lisboa, 2015, ISBN 978-989-724-262-5.
Cortesia
de CAutor/JDACT