Agosto
de 1099. Bagdade
«… Foi,
de facto, na sexta-feira 22 do tempo de Chaaban, do ano de 492 da Hegira, que
os franj se apossaram da Cidade Santa, após um cerco de quarenta dias.
Os exilados ainda tremem cada vez que falam nisso, o seu olhar torna-se gélido como
se eles ainda tivessem diante dos olhos, aqueles guerreiros louros, protegidos
de armaduras, que espalham pelas ruas o sabre cortante, desembainhado, degolando
homens, mulheres e crianças, pilhando as casas, saqueando as mesquitas. Dois
dias depois, não havia um só muçulmano dentro das cidades. Alguns
aproveitaram-se da confusão para fugir, pelas portas que os invasores haviam
arrombado. Outros jaziam, aos milhares, em poças de sangue na soleira das suas
casas ou nas proximidades das mesquitas. Entre eles, um grande número de imãs, e
ascetas sufis que haviam deixado a sua terra para viver um retiro piedoso,
nesses santos lugares. Os últimos sobreviventes forçados a cumprir a pior das
tarefas: transportar os cadáveres dos seus, amontoando-os, sem sepultura, nos
terrenos baldios para em seguida queimá-los. Os sobreviventes por sua vez
deveriam proteger-se para não serem massacrados ou vendidos como escravos. O
destino do judeus de Jerusalém foi igualmente atroz. Durante as primeiras horas
da batalha, vários deles participaram da defesa do seu bairro, a Judiaria,
situada ao norte da cidade. Mas quando a parte da muralha que delimitava as suas
casas desmoronou, os judeus apavoraram-se, vendo que os louros cavaleiros começavam
a invadir as ruas da cidade. A comunidade inteira, reproduzindo um gesto
ancestral, reuniu-se na sinagoga principal para rezar. Os franj então
bloquearam todos os acessos. Depois, empilhando feixes de lenha em torno,
atearam fogo. Os que tentavam sair eram mortos nos becos vizinhos, os outros,
queimados vivos. Alguns dias após o drama, os primeiros refugiados da Palestina
chegaram a Damasco trazendo, com extremo cuidado, o Alcorão de Othman, um dos
mais antigos exemplares do Livro Sagrado. Em seguida, os fugitivos de Jerusalém
aproximaram-se da metrópole síria. Avistando de longe a silhueta dos três
minaretes da mesquita omíada que se destacam acima da muralha quadrada, então
estenderam o seu tapete de oração para agradecer ao Todo-Poderoso por ter assim
prolongado as suas vidas que acreditavam ter chegado ao fim. Como grande cadi
de Damasco, Abu-Saad al-Harawi acolheu os refugiados com benevolência. Esse
magistrado de origem afegã era a personalidade mais respeitada da cidade,
conselheiro e consolador dos palestinos. Segundo ele, um muçulmano não deveria envergonhar-se
de ter tido que fugir da sua casa. O primeiro refugiado do Islão não fora o
próprio profeta Maomé, que tivera que deixar a sua cidade natal, Meca, cuja
população lhe era hostil, buscando refúgio em Medina, onde a nova religião era
mais aceite? E não fora a partir de seu exílio que lançara a Guerra Santa, o jihad,
para libertar a pátria da idolatria? Os refugiados devem considerar-se os
combatentes da Guerra Santa, os mujahidins por excelência, tão honrados
no Islão que a emigração do Profeta, a Hégira, foi escolhida como ponto de partida
da era muçulmana. Para muitos crentes, o exílio era, no caso de ocupação,
inclusive um dever imperativo. O viajante Ibn Jobair, um árabe da Espanha que
visitara a Palestina (cerca de um século após o início da invasão franca),
ficara escandalizado vendo que alguns muçulmanos, subjugados pelo amor da
terra natal, aceitam viver em território ocupado. Não há, dizia ele,
para muçulmano, desculpa alguma perante Deus para a sua estada numa cidade ímpia,
a menos que esteja simplesmente de passagem. Em terra do Islão, encontrou abrigo
contra os males a que estava submetido. Contrariamente, em paisagens
estrangeiras era obrigado a ouvir ofensas dirigidas ao Profeta, sujeitar-se aos
impedimentos de purificação, viver entre os porcos e a tantas outras licenciosidades.
Abstenham-se, abstenham-se de penetrar nessas regiões! É preciso pedir perdão e
misericórdia a Deus para evitar tal erro. Um dos horrores que saltam aos olhos
de quem mora no território dos cristãos é o espectáculo dos prisioneiros muçulmanos
tropeçando nos grilhões, usados para trabalhos forçados quando são tratados
como escravos. O mesmo ocorre com o espectáculo das cativas muçulmanas que
trazem aos pés anéis de ferro. Os corações despedaçam-se a essa visão, mas
piedade não lhes serve para nada. Excessivas quanto à doutrina, as palavras
de Ibn Jobair reflectem bem a atitude desses milhares de refugiados da
Palestina e da Síria do Norte, reunidos em Damasco, nesse mês de Julho de 1099.
Pois, se foi com consternação que deixaram as suas casas, eles se determinam a
não voltar antes da partida definitiva do ocupante e decididos a despertar a
consciência dos seus irmãos nas regiões do Islão. Senão, por que teriam vindo a
Bagdade, conduzidos por al-Harawi? Nao é para o califa, o sucessor do Profeta,
que se devem voltar os muçulmanos nas horas difíceis? Não é para o príncipe dos
crentes que devem elevar as suas queixas e lamentações?» In Amin Maalouf, As Cruzadas
vistas pelos Árabes, 1983, Colecção História Narrativa, nº 38, Reimpressão, Edições
70, Ensaio, 2016, ISBN-978-972-441-756-1.
Cortesia
de Edições70/JDACT