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Porto
de Cádis, 7 de Janeiro de 1748
«(…)
Assim que dom José faleceu, cumpriu-se o ritual do funeral: foram rezados três
responsos e o seu cadáver foi atirado borda fora, dentro de um saco e com duas
moringas de água atadas aos pés. O capitão ordenou que se desmontasse o beliche
e que o escrivão registasse os bens do defunto. Dom José era o único
passageiro; Caridad, a única mulher a bordo. Reverendo, disse para o capelão
depois de transmitir aquela ordem, fica responsável por manter a negra afastada
da tripulação. Mas eu..., tentou protestar o padre Damián. Embora não seja sua,
pode aproveitar a comida que o senhor Hidalgo embarcou e alimentá-la com ela, sentenciou
o oficia1 depois de ignorar o protesto. O padre Damián manteve Caridad fechada
no seu diminuto camarote, onde só havia lugar para a rede que pendurava de lado
a lado e que durante o dia recolhia e enrolava. A mulher dormia no chão, a seus
pés, debaixo da rede. Nas primeiras noites, o capelão refugiou-se na leitura dos
livros sagrados, mas pouco a pouco os seus olhos foram seguindo os raios do
candil que, como se tivessem vontade própria, pareciam desviar-se das folhas dos
pesados tomos para iluminar a mulher deitada e encolhida tão perto dele.
Lutou
contra as fantasias que o assaltavam perante a visão das pernas de Caridad quando
se escapavam por debaixo da manta com que se tapava, dos seus seios, que subiam
e desciam ao ritmo da sua respiração, das suas nádegas. E, no entanto, quase involuntariamente,
começou e tocar-se. Talvez tenha sido por causa do ranger das tábuas onde se
prendia a rede, ou pela tensão que se fora acumulando num espaço tão reduzido,
a verdade é que Caridad abriu os olhos e toda a luz do candil se centrou neles.
O padre Damián corou e ficou quieto por um instante, mas o seu desejo
multiplicou-se perante o olhar de Caridad, o mesmo olhar inexpressivo com que agora
recebia as suas palavras. Ouve o que te digo, Caridad, insistiu. Procura trabalho.
O padre Damián pegou no baú, virou-lhe as costas e seguiu o seu caminho.
Porque
me sinto culpado?,
perguntou-se enquanto parava momentaneamente para mudar o baú de mão. Podia ter
abusado dela, desculpou-se, como sempre que a culpa o torturava. Era apenas uma
escrava. Talvez..., talvez nem sequer tivesse sido necessário recorrer à violência.
Acaso não eram dissolutas todas aqueles escravas negras? Dom José, o seu amo,
reconhecera-o em confissão: deitava-se com todas. Tive um filho com a Caridad, revelou-lhe.
Talvez dois, mas não, julgo que não; o segundo, aquele rapaz desajeitado e tontinho,
era tão escuro como ela. Está arrependido?, perguntou-lhe o sacerdote. De ter
filhos com as negras? O cultivador de tabaco empertigou-se. Padre, vendia os crioulinhos
num moinho próximo da propriedade dos padres. Nunca se preocuparam com a minha alma
pecadora no momento de mos comprar.
O
padre Damián dirigia-se para a catedral de Santa cruz, do outro lado da estreita
língua de terra onde se erguera a cidade amuralhada fechando a baía. Antes de virar
por uma rua, voltou-se e vislumbrou a figura de Caridad entre a multidão:
tinha-se afastado e encostara-se contra um muro onde permanecia quieta, alheia
ao mundo. Conseguirá sobreviver, disse para consigo acelerando o passo e
contornado a rua. Cádis era uma cidade rica com comerciantes e mercadores de toda
a Europa e onde o dinheiro fluía em abundância. Era uma mulher livre e, portanto,
aprenderia a viver em liberdade e a trabalhar. Continuou a andar, e quando
chegou e um ponto onde as obras da noca catedral, perto da de Santa Cruz, se avistavam
com nitidez, parou. Em que ia trabalhar aquela pobre desgraçada? Não sabia
fazer nada senão andar de um lado para o outro na plantação de tabaco onde vivera
desde os dez anos quando, procedente do reino do povo lucumi, no golfo da Guiné, os assentistas de escravos ingleses a
tinham comprado por quatro míseras varas de tecido para a revender no ávido e
necessitado mercado cubano. Assim o tinha relatado o próprio dom José Hidalgo
ao capelão quando este quis saber a razão de a ter escolhido para a viagem. É
forte e desejável, acrescentou o cultivador de tabaco piscando-lhe o olho. E ao
que parece já não é fértil, o que é sempre uma vantagem quando saem da
plantação. Depois de dar à luz aquele menino tonto…» In Ildefonso Falcones, A Rainha
Descalça, 2013, tradução de Rita Custódio e Alex Tarradellas, Bertrand Editora,
Lisboa, 2014, ISBN 978-972-252-815-3.
Cortesia
Bertrand/JDACT