domingo, 10 de abril de 2016

A Jesuíta de Lisboa. Titus Muller. «Teria gostado de poder medir a pressão atmosférica durante a tempestade do dia anterior. Por que razão diminuía essa pressão quando se aproximava uma borrasca? E como se comportaria esta durante a tempestade?»

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«(…) Foi acordado por uma voz. Quer que lhe sirva a comida, sir, ou deverei lançá-la já borda fora? O retumbar deixara de se fazer ouvir. O barco rangia pacatamente, entregando-se à ondulação. Olhou para cima, para a escotilha. Uma lamparina que emitia uma luz avermelhada iluminava o rosto do grumete. O rapaz esboçou um sorriso trocista. Antero apalpou as suas roupas. Estavam frias e hirtas. Tira esse sorriso da cara, rapazola, ou vou aí e é à pancada que to tiro, ao dizer isto, enganou-se na pronúncia que fingia ter. Eu subo. É claro que consigo manter a comida no estômago. Tinha sobrevivido. Era evidente que, enquanto dormia, a tempestade se havia acalmado. Antero desceu do beliche. Era já só em pequenas poças que a água se acumulava no chão. Apoiou-se na mesa. Trepou escada acima com dificuldade. Era costume os passageiros comerem à mesa do comandante e dos oficiais. Desconfiava de que fora o próprio Wrightson a dar ordens para que a comida lhe fosse sempre servida na cabina, para que ele próprio ficasse a salvo de quaisquer suspeitas de estarem combinados, caso o empreendimento desse para o torto. Era obviamente impensável pô-lo a comer junto da tripulação, já que isso iria fomentar a insatisfação entre os marinheiros, uma vez que, enquanto passageiro, ele recebia uma alimentação melhor do que a deles. Aos marinheiros era servida carne fria pela manhã e de resto comiam uma mistura que consistia de água e farinha, a que davam o nome de caldo indiano. Ele, pelo contrário, recebia refeições quentes e bem condimentadas, semelhantes às que seriam servidas numa estalagem de nível médio. De resto, não havia razão alguma para o isolar do contacto com os oficiais, a não ser o facto de o comandante Wrightson estar assim a tentar proteger-se de quaisquer danos. A falta de confiança deste no sucesso daquele empreendimento era algo que irritava Antero. Das duas uma: ou se estava naquilo de corpo e alma e se respondia por isso, ou deixava-se ficar a coisa.
Quando ele subiu para o exterior, através da escotilha, o grumete estendeu-lhe um tabuleiro, sobre o qual havia um púcaro de madeira, com biscoitos em redor. Hoje quer comer aqui fora ao ar livre, sir?, perguntou. Deixara de fazer aquele sorriso trocista. Antero já estava farto do bojo do navio. Sentia necessidade de ver o céu. Queria ter a sensação de que ainda se mantinha vivo. Deixa o tabuleiro aí, disse e desta feita a pronúncia voltou a sair-lhe melhor. O grumete colocou o tabuleiro sobre o rebordo elevado da escotilha. Quer que também deixe a luz aqui? Antero olhou em redor. O vento continuava a soprar com força e havia nuvens negras a cobrirem o céu. Junto ao horizonte adquiriam um brilho avermelhado. Próximo do navio conseguia, mesmo só com a crepuscular luminosidade matinal, vislumbrar a espuma nas vagas, embora o mar se apresentasse agora mais liso e vasto. Não é necessário. Não tarda a ficar claro. Espera. Voltou a descer e foi buscar o livro de apontamentos, que estava debaixo da enxerga de palha. Já lá em cima, junto à lamparina, sentou-se na borda da escotilha, retirou o livro do cabedal que o envolvia, humedeceu a ponta do lápis de carvão e escreveu: Quinta-feira, 30 de Outubro de 1755. Violenta tempestade. Cristas das vagas que se abatem sobre o navio, vento com a força de um furacão. O Fortune resistiu. Sexta-feira, 31 de Outubro de 1755, alvorada. Mar encrespado. Espuma no cimo das ondas. O vento continua forte. Arrumou o livro dos apontamentos no bolso junto ao peito e disse: Obrigado. Podes ir. Quando o grumete se foi embora com a luz, Antero pegou num pedaço de biscoito e levou-o à boca. Estava humedecido e fora barrado com manteiga e sal. Antero mastigou, pegou no púcaro e bebeu. Um vinho de taberna de sabor azedo misturou-se com a saliva pastosa dos restos do biscoito. O contrabando no porão do Fortune tinha um valor de pelo menos trinta mil réis. Depois de entregar a carga ao homem, iria descansar uns dias. Visitaria Leonor. E Samira. Antero aspirou profundamente para os seus pulmões o ar fresco do mar. Tudo haveria de correr bem. Esta era a época dos contrabandistas. Quem conseguiria vigiar a vastidão dos mares mundiais? Ninguém era capaz de tal coisa. Os mares eram livres. Só os portos podiam ser controlados, mas até mesmo aí havia sempre maneira de se esgueirar. De noite era simplesmente impossível abranger com a vista a totalidade de um porto grande como o de Lisboa. Por entre as chalupas que traziam os marinheiros de regresso aos seus navios, depois de um serão passado a emborracharem-se, por entre os botes que conduziam os oficiais até junto das suas famílias, ninguém conseguia distinguir um barco a remos com contrabando.
Ainda assim, bem no fundo do seu coração custava-lhe tudo aquilo. Contrabando não era algo que gostasse de fazer. Teria preferido dedicar-se à exploração do enigmático continente meridional, a Terra Australis incognita, e pelo caminho trataria de cartografar e fazer o reconhecimento das ilhas até então desconhecidas. De que lhe serviriam aqueles ridículos apontamentos que ia tomando? Precisava de instrumentos, de um barómetro, de um sextante, não de madeira, atreita a ficar empenada por causa da humidade do ar marítimo, mas antes de metal, que permitia o máximo de exactidão possível. O comandante Wrightson ainda navegava com a vara-de-jacob. No entanto, a posição poderia ser determinada com muito mais facilidade com recurso a um sextante. E com um barómetro, quanto não se poderia investigar com um instrumento desses! Teria gostado de poder medir a pressão atmosférica durante a tempestade do dia anterior. Por que razão diminuía essa pressão quando se aproximava uma borrasca? E como se comportaria esta durante a tempestade? Adiante, onde as nuvens tocavam a água, houve algo que produziu um clarão. Antero olhou atentamente nessa direcção. E eis que brilhava de novo! Virou-se para a popa. Onde, no meio da escuridão, se conseguia distinguir a roda do leme, nada se movia». In Titus Muller, A Jesuíta de Lisboa, 2010, tradução de Paulo Rêgo, Casa das Letras, 2011, ISBN 978-972-462-047-3.

Cortesia Cletras/JDACT