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A
Infanta de Arévalo
«(…) Beatriz de Bobadilla, será
que, para vós, tudo tem de ser uma competição? Ela pôs-se de mãos nas ancas. Sim,
quando se trata de provar o nosso valor. Se não formos nós a fazê-lo, quem o
fará? Portanto, é a nossa força que desejais provar, concluí. Hum. Explicai-me
isso. Deixando-se cair ao meu lado, Beatriz ficou a admirar o crepúsculo.
Naquela altura do ano, o sol punha-se devagar em Castela, oferecendo-nos uma
visão de tirar o fôlego, nuvens orladas a dourado e céus em tons violeta e
escarlate. O incipiente vento do anoitecer revolveu-lhe os cabelos pretos todos
emaranhados; os seus olhos expressivos, tão rápidos a revelar-lhe os
pensamentos, tornaram-se melancólicos. Quero provar que somos tão capazes como
qualquer homem e que por isso deveríamos ter os mesmos privilégios. Franzi o
sobrolho. E para quê? Para podermos viver como quisermos sem termos de pedir
desculpa por isso, tal como Sua Alteza. Alfonso não vive como quer. Ajeitei o
meu capuz, enfiando os atilhos no corpete. Aliás, ele tem muito menos liberdade
do que julgais. Tirando hoje, mal o tenho visto, de tão ocupado que anda com a
esgrima, com o arco e flecha e com os torneios, já para não falar nos estudos.
Ele é um príncipe. Têm muitas obrigações. Beatriz fez cara feia. Sim,
obrigações importantes e não apenas aprender a costurar, a fazer manteiga e a
levar as ovelhas para o curral. Se pudéssemos viver como homens, seríamos
livres de correr mundo por causas nobres, como um cavaleiro andante ou como Joana
d’Arc.
Escondi a excitação inesperada que
as suas palavras me provocaram. Treinara-me para esconder o que sentia desde
que a minha mãe, Alfonso e eu fugíramos de Valladolid naquela terrível noite há
dez anos; com o tempo, ficara a compreender muito melhor o sucedido. Não
estávamos tão isolados em Arévalo que eu não fosse sabendo aos poucos as
ocasionais notícias que corriam a meseta vindas das residências reais em
Madrid, Segóvia e Valladolid; a nossa criadagem trocava mexericos sobre tudo
isso, e era fácil ouvi-los, bastava fingir que não se estava atento. Sabia que,
com a subida de Henrique ao trono, a corte se tornara um lugar perigoso para
nós, sendo governada pelos seus favoritos e pela sua avarenta rainha. Nunca
esquecera o medo palpável que sentira na noite da morte do meu pai, nem a longa
viagem por campos e florestas escuras, evitando as estradas principais não
fosse Henrique ter enviado guardas atrás de nós. Essa memória ficara gravada em
mim, uma lição indelével de que as mudanças ocorrem quer estejamos ou não
preparados, e de que devemos tentar adaptarmo-nos protestando o menos possível.
Joana d'Arc morreu na fogueira, acabei por dizer. É esse o fim grandioso a que
devemos aspirar, minha amiga? Beatriz suspirou.
Claro que não; essa é uma morte
horrível. Mas gostaria de pensar que, surgindo uma oportunidade, poderíamos
liderar exércitos em defesa do nosso país, tal como ela fez. Como as coisas são
agora, antes de vivermos já estamos condenadas. Estendendo os braços, exclamou:
é sempre o mesmo, dia após dia, uma semana atrás da outra, um enfadonho mês
atrás do outro! Será que todas as damas são educadas assim? Seremos tão burras
que os nossos prazeres só possam ser receber convidados, agradar ao nosso
futuro marido e aprender a sorrir entre dois pratos sem nunca darmos a nossa
opinião? Nesse caso, mais vale saltarmos o casamento e os filhos e passarmos
directamente à velhice e à santidade. Olhei para ela. Beatriz estava sempre a
fazer perguntas para as quais não havia resposta simples e a tentar mudar
aquilo que já era assim, antes de termos nascido. Desconcertava-me o facto de
também eu andar ultimamente a pôr-me questões parecidas; jamais o admitiria, mas
afligia-me uma inquietação semelhante. Não gostava da impaciência que me
dominava ao pensar no futuro, pois sabia que até mesmo eu, uma princesa de
Castela, teria um dia de me casar com quem me mandassem e de me conformar com a
vida que o meu marido entendesse dar-me.
Casar e cuidar do nosso esposo e
dos nossos filhos não é entediante nem nos rebaixa - afirmei. É isso o que cabe
às mulheres desde o começo dos tempos. Estais apenas a recitar o que vos
ensinaram, replicou Beatriz. As mulheres têm filhos e os homens garantem o
sustento. Mas eu pergunto: porquê? Porquê só essa opção? Quem disse que uma mulher
não pode empunhar uma espada, erguer a cruz e marchar sobre Granada para derrotar
os mouros? Quem disse que não podemos tomar as nossas decisões ou gerir a nossa
vida tão bem como qualquer homem? Não importa quem o disse; as coisas são assim
e pronto. Ela revirou os olhos. Ora, Joana d’Arc não casou. Não fez limpezas,
nem costura nem enxoval. Vestiu uma armadura e foi lutar pelo seu delfim. Que,
então, a entregou aos ingleses, - recordei-lhe, fazendo depois uma pausa. Beatriz,
Joana d’Arc foi chamada a servir Deus. Não podeis comparar o seu destino ao
nosso. Ela foi escolhida por Ele e sacrificou-se pelo seu país. Beatriz bufou
rudemente mas eu sabia que tinha marcado um ponto indiscutível nesta discussão
que vínhamos travando desde a infância. Mostrei-me imperturbável, como sempre
fazia quando Beatriz se punha a pontificar, mas, ao imaginar a minha
entusiástica amiga vestida com uma armadura ferrugenta, a instigar uma
companhia de nobres a lutar pela pátria, deixei escapar um risinho. E agora
ris-vos de mim!, protestou ela. Não, não. Contive-me o melhor que consegui. Não
fazia isso». In CW Gortner, O Juramento da Rainha, Isabel, a Católica, 2012,
tradução de Miguel Romeira, Topseller, 20/20 Editores, 2013, ISBN
978-9879-862-627-1.
Cortesia de Topseller/JDACT