«(…)
É britânico. Onde aprendeu a pilotar? Incline a cabeça para este lado, por favor.
O nariz arrebitado agigantava-se sobre ele. Em Cambridge. No University Air Squadron.
Ah, o meu pai também andou lá. Ouvi dizer que é divertido. Sim. Kilverton falou
mais um pouco acerca de corpúsculos, tónus muscular e da juventude ainda estar do
lado dele. Voltou a falar na sorte que Dom tivera. Em breve, terá a sua cara antiga
e o seu sorriso antigo de volta. Como se um sorriso fosse uma coisa que se pudesse
remendar. Enquanto o escutava, Dom teve de novo aquela sensação horrorosa de flutuar
por cima de si próprio, de ver rostos bondosos lá em baixo e não ser capaz de os
alcançar. Desde o acidente, uma pessoa nova instalara-se dentro do rosto antigo
e do sorriso antigo. Um eu reconstituído que fumava e comia, que brincava e ainda
era capaz de dizer piadas cínicas, mas que se sentia essencialmente morto. Na
semana passada, encorajado pelos médicos a dar a primeira volta na sua moto, sentara-se
na beira relvada do pub Mucky Duck, no
que devia ser um dia muito especial, e ficara a olhar para a mão que rodeava o
copo de cerveja como se pertencesse a outra pessoa.
Durante
as primeiras semanas no hospital, agora uma mancha indistinta de cateteres intravenosos,
viagens de ambulância e banhos de ácido, o seu único propósito na vida havia
sido o de não se tornar um embaraço para os outros ao desatar aos soluços ou aos
gritos. Inicialmente cego, conseguira lançar um sarcástico és bonita?, à
enfermeira que o acompanhara na ambulância que o levou para longe da meda de feno
fumegante. Mais tarde, nas enfermarias, fizera um acordo consigo mesmo: não iria
negar a dor física, que era constante, aguda, e tão má, por vezes, que chegava a
ser quase engraçada, mas emocionalmente, não iria admitir absolutamente nada. Se
alguém lhe perguntasse como é que ele estava, estava bem. Só na calma relativa.
da noite, nos momentos lúcidos quando emergia da névoa da morfina, é que ele pensava
na natureza da dor. Para que servia? Como deveríamos lidar com ela? por que motivo
fora ele salvo e os outros tinham morrido? E só meses depois, quando as mãos já
estavam suficientemente curadas, começou a escrever no diário que a mãe lhe tinha
enviado. Páginas e páginas de coisas sobre Jacko e Cowbridge, ambos mortos naquele
dia. Uma carta para a noiva de Jacko, Jill, por enviar. Cartas para os seus próprios
pais, idem, avisando-os de que quando estivesse melhor, estava decidido a pilotar
de novo. E depois apareceu a rapariga. Quando ela entrou na enfermaria naquela noite,
o que o impressionou mais foi o facto de parecer tão jovem: jovem, vivaz e esperançosa.
Da cama, ele absorveu todos os pormenores dela». In Júlia Gregson, Noites
de Jasmim, Edições ASA, tradução de Ana Pereira, 2012, ISBN 978-989-231-964-3.
Cortesia
ASA/JDACT