quarta-feira, 20 de abril de 2016

Madre Paula. Patrícia Muller. «El-rei preferia minuetes. Leocádia não gostava da dança dos negros. Dizia que eram movimentos grosseiros, típicos de gente selvagem. Eu e a Luz ríamos sempre que ouvíamos a pequenita falar como gente grande»

jdact

«(…) Não me abandones. Não sei que vida posso ter sem ti, disse-me. Amava a música. Era uma paixão e uma arma de conquista. No convento, sabia-se que uma freira tinha caído nas graças d'Ele quando se ouvia a orquestra e tocar perto da sua cela. Depois de termos terminado, foram muitas as vezes que ouvi tal música, e o que antes me parecia uma harmonia celestial era apenas um rugido triste de um amor que iria terminar. Não o meu, que esse já não existia para Ele. Mas o amor que el-rei vivia naquele momento e que iria terminar, porque todos terminavam. Sentia pena das raparigas que iriam sofrer. Eu sofri, mas fui a primeira a quem Ele trouxe música.
Dizem que el-rei proibiu a ópera porque pensou que Deus lhe paralisara metade do corpo por ouvir música profana. Mais mentiras. El-rei conheceu a ópera por causa de Maria Ana e proibiu-a por minha causa. Ouvi-la sem mim tornou-se-lhe intolerável.
Nós, as irmãs, éramos inseparáveis. O pai trabalhava muitas horas e deixava-nos entregues às nossas brincadeiras, A Luz, mais aventureira, calcorreava as ruas de Lisboa, da nossa casa à Mouraria, só para ver dançar lundum, a dança que veio com os negros de África. O rei não gostava de ritmos primitivos. O rei só gabava o que se dançava nas cortes europeias, principalmente na de Luís XIV. Nesta altura, eu pouco sabia de cultura e nem tinha começado a minha educação. Acompanhava a Luz a uma casa escondida num beco, onde escravas rebolavam traseiros e ombros, para cima e para baixo, a comandar a provocação aos homens. Morria de vergonha, perguntava-me se seria capaz de dançar daquela maneira ousada e sensual. Usavam saias compridas e corpetes justos, rodopiavam devagar com as mãos a agarrarem o tecido que caía até aos pés. Sacudiam as ancas. Quando a música acelerava, entravam os homens num uivo, colhiam-nas por trás, envolvidos na confusão, a mão esquerda dela num ângulo recto a tocar na orelha dele, primeiro, depois dobrada até ao cimo da cabeça. Ele sem mexer as mãos, para a frente e para trás, a música a intrometer-se no sangue cada vez mais depressa. A Luz dizia que os negros tinham a dança no sangue. Duas criadas que me serviram no tempo do rei eram negros. Quando estava muito triste ou enfurecida, obrigava-as a dançar lundum sem música, não sei se para recordar a felicidade que não sentia, se para castigá-las pelos pecados praticados, se por inveja de as ver dançar para longe dali, noutro mundo, tão erótico e intenso. Se tivesse conhecido o segredo dos corpos que falam sem palavras, Ele não teria partido. Agora compreendo o tonto enredo dos meus pensamentos. Não me arrependo da maldade que fiz às raparigas. Fiz maldades a muitas pessoas. Também fui alvo de muitas maldades. Perdoados seremos todos.
El-rei preferia minuetes. Leocádia não gostava da dança dos negros. Dizia que eram movimentos grosseiros, típicos de gente selvagem. Eu e a Luz ríamos sempre que ouvíamos a pequenita falar como gente grande. Mas o que sabes tu dos negros?, dizia a Luz. Sei. Tu é que não queres que o pai saiba que estamos aqui a ver este espectáculo degradante. Era a altura em que eu levantava a mão e dava uma bofetada na Leocádia. Sempre fui a mais alta das três, a mais forte. Antes do convento, tinha vestidos meus. Os da Luz só serviam à Leocádia. Tenho costas largas, coxas grossas, pernas fortes. A minha pele é morena, o meu cabelo é o meu grande orgulho. Não me considero bonita. Os meus olhos são enormes e estranhos. El-rei dizia que continham um reino dentro. João V via em mim uma beleza que eu nunca consegui encontrar. Como não és bonita? Os homens perdem-se por mulheres feias, porventura? A Luz via também.
O tempo ensinou-me que os homens gostam das mulheres que os amam. Não sou bonita mas há alguma coisa em mim que diz que sei amar. Sempre houve e eu desconhecia. Foi o que atraiu o rei, que eu nada soubesse de sentimentos. João deu-me a provar distâncias que nem sonhava. Aguardente água que arde. Queimava a garganta e incendiava a alma. Do que eu mais gostava era de me entontecer com el-rei, rir com el-rei, cantar com el-rei, enciumar-me, gritar, discutir com tal força que só os beijos me podiam calar. Do que eu mais gostava era de fazer as pazes com el-rei, na cama que el-rei mandou fazer para mim». In Patrícia Muller, Madre Paula, Edições ASA II, 2014, ISBN 978-989-232-783-9.

Cortesia de ASA/JDACT