«(…) Há três que citarei amiúde.
Dois que provêem de personagens que conheceram Tanios de perto. E um terceiro
mais recente. O seu autor é um religioso que morre no dia seguinte à I Guerra
Mundial, o monge Elias de Kfaryabda, é o nome da minha aldeia, penso que ainda o
não mencionei. A sua obra intitula-se da seguinte maneira: Crónica da Montanha
ou a História da aldeia de Kfaryabda dos lugarejos e das quintas que dela
dependem dos monumentos que aí se levantam dos costumes que aí se observam das
pessoas notáveis que aí viveram e dos acontecimentos que aí se desenrolaram com
a permissão do Altíssimo. Um livro estranho, desigual, desanimador. Em
algumas páginas o tom é pessoal, a pena aquece e liberta-se, deixamo-nos levar
por alguns voos, por alguns desvios audaciosos, e cremos estar na presença de
um verdadeiro escritor. E depois repentinamente, como se temesse ter pecado por
orgulho, o monge retracta-se, o seu tom baixa, inclina-se, como que para fazer
penitência, sobre o seu papel de piedoso compilador, e acumula as alusões aos
autores do passado e aos notáveis do seu tempo, de preferência em verso, esses
versos árabes do tempo da Decadência, empestados de imagens convencionais e
frios sentimentos.
Só me apercebi disso depois de ter
terminado, pela segunda vez, de ler essas mil páginas, novecentas e noventa e
sete, muito exactamente, desde o preâmbulo ao verso final, que diz tu que lerás
o meu livro, mostra-te indulgente.... De início, quando tive entre as mãos
essa obra de capa verde ornada simplesmente com um grande losango negro, e a
abri pela primeira vez, não vi senão essa escrita apertada, sem vírgulas nem pontos,
e também sem parágrafos, bando de carneiros caligráficos fechados nas suas
margens, tal como uma tela no seu quadro, tendo de vez em quando uma palavra
solta para recordar a página anterior ou anunciar a seguinte. Hesitando ainda
em me enfronhar numa leitura que ameaçava ser repugnante, folheava o monstro
com a ponta dos dedos, com a ponta dos olhos, quando se destacaram diante de
mim estas linhas, que recopiei imediatamente e mais tarde traduzi e pontuei: de
quatro de Novembro de 1840, data do enigmático desaparecimento de
Tanios-kichk... No entanto ele tinha tudo, tudo o que um homem pode esperar da
vida. O seu passado tinha-se desenrolado, o caminho do futuro tinha-se
aplanado. Não pôde ter abandonado a aldeia de sua própria vontade. Ninguém pode
duvidar de que há uma maldição no rochedo que tem o seu nome. De repente as
mil páginas deixaram de me parecer opacas. Passei a olhar esse manuscrito de
uma maneira completamente diferente. Como um guia, um companheiro. Ou talvez
como uma montada. A minha viagem podia começar.
Nesse
tempo, o céu era tão baixo que nenhum homem ousava levantar-se a toda a sua altura.
No entanto, havia a vida, havia desejos e festas. E se nunca se esperava o
melhor neste mundo, esperava-se todos os dias escapar ao pior. A aldeia inteira
pertencia então a um único senhor feudal. Era o herdeiro de uma longa linha de xeques,
mas quando hoje se fala da época do xeque sem mais qualquer outra
precisão, ninguém se engana, trata-se daquele à sombra do qual viveu Lamia. Não
era, longe disso, uma das personagens mais poderosas do país. Entre a planície
oriental e o mar, havia dezenas de domínios mais vastos do que o seu. Ele apenas
possuía Kfaryabda e algumas quintas em redor, deveria ter sob a sua autoridade uns
trezentos lares, pouco mais. Acima dele e dos seus pares, havia o emir da Montanha,
e acima do emir os paxás de província, os de Tripoli, de Damas, de Saïda ou de Acre.
E ainda mais alto, muito mais alto, na vizinhança do Céu, havia o sultão de
Istambul. Mas as pessoas da minha aldeia não olhavam para tão alto. Para eles, o
seu xeque já era uma personagem considerável». In Amin Maalouf, O Rochedo de
Tanios, 1993, tradução de Maria Sarmento, Difel, Lisboa, 2008, ISBN
978-972-290-885-6.
Cortesia
Difel/JDACT