segunda-feira, 4 de abril de 2016

O Rochedo de Tanios. Amin Maalouf. «Nesse tempo, o céu era tão baixo que nenhum homem ousava levantar-se a toda a sua altura. No entanto, havia a vida, havia desejos e festas. E se nunca se esperava o melhor neste mundo…»

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«(…) Há três que citarei amiúde. Dois que provêem de personagens que conheceram Tanios de perto. E um terceiro mais recente. O seu autor é um religioso que morre no dia seguinte à I Guerra Mundial, o monge Elias de Kfaryabda, é o nome da minha aldeia, penso que ainda o não mencionei. A sua obra intitula-se da seguinte maneira: Crónica da Montanha ou a História da aldeia de Kfaryabda dos lugarejos e das quintas que dela dependem dos monumentos que aí se levantam dos costumes que aí se observam das pessoas notáveis que aí viveram e dos acontecimentos que aí se desenrolaram com a permissão do Altíssimo. Um livro estranho, desigual, desanimador. Em algumas páginas o tom é pessoal, a pena aquece e liberta-se, deixamo-nos levar por alguns voos, por alguns desvios audaciosos, e cremos estar na presença de um verdadeiro escritor. E depois repentinamente, como se temesse ter pecado por orgulho, o monge retracta-se, o seu tom baixa, inclina-se, como que para fazer penitência, sobre o seu papel de piedoso compilador, e acumula as alusões aos autores do passado e aos notáveis do seu tempo, de preferência em verso, esses versos árabes do tempo da Decadência, empestados de imagens convencionais e frios sentimentos.
Só me apercebi disso depois de ter terminado, pela segunda vez, de ler essas mil páginas, novecentas e noventa e sete, muito exactamente, desde o preâmbulo ao verso final, que diz tu que lerás o meu livro, mostra-te indulgente.... De início, quando tive entre as mãos essa obra de capa verde ornada simplesmente com um grande losango negro, e a abri pela primeira vez, não vi senão essa escrita apertada, sem vírgulas nem pontos, e também sem parágrafos, bando de carneiros caligráficos fechados nas suas margens, tal como uma tela no seu quadro, tendo de vez em quando uma palavra solta para recordar a página anterior ou anunciar a seguinte. Hesitando ainda em me enfronhar numa leitura que ameaçava ser repugnante, folheava o monstro com a ponta dos dedos, com a ponta dos olhos, quando se destacaram diante de mim estas linhas, que recopiei imediatamente e mais tarde traduzi e pontuei: de quatro de Novembro de 1840, data do enigmático desaparecimento de Tanios-kichk... No entanto ele tinha tudo, tudo o que um homem pode esperar da vida. O seu passado tinha-se desenrolado, o caminho do futuro tinha-se aplanado. Não pôde ter abandonado a aldeia de sua própria vontade. Ninguém pode duvidar de que há uma maldição no rochedo que tem o seu nome. De repente as mil páginas deixaram de me parecer opacas. Passei a olhar esse manuscrito de uma maneira completamente diferente. Como um guia, um companheiro. Ou talvez como uma montada. A minha viagem podia começar.

Nesse tempo, o céu era tão baixo que nenhum homem ousava levantar-se a toda a sua altura. No entanto, havia a vida, havia desejos e festas. E se nunca se esperava o melhor neste mundo, esperava-se todos os dias escapar ao pior. A aldeia inteira pertencia então a um único senhor feudal. Era o herdeiro de uma longa linha de xeques, mas quando hoje se fala da época do xeque sem mais qualquer outra precisão, ninguém se engana, trata-se daquele à sombra do qual viveu Lamia. Não era, longe disso, uma das personagens mais poderosas do país. Entre a planície oriental e o mar, havia dezenas de domínios mais vastos do que o seu. Ele apenas possuía Kfaryabda e algumas quintas em redor, deveria ter sob a sua autoridade uns trezentos lares, pouco mais. Acima dele e dos seus pares, havia o emir da Montanha, e acima do emir os paxás de província, os de Tripoli, de Damas, de Saïda ou de Acre. E ainda mais alto, muito mais alto, na vizinhança do Céu, havia o sultão de Istambul. Mas as pessoas da minha aldeia não olhavam para tão alto. Para eles, o seu xeque já era uma personagem considerável». In Amin Maalouf, O Rochedo de Tanios, 1993, tradução de Maria Sarmento, Difel, Lisboa, 2008, ISBN 978-972-290-885-6.

Cortesia Difel/JDACT