jdact
Do lado do excesso de comunicação
«(…) E de modo semelhante com os outros sentidos que
implicam proximidade: o paladar e o tacto. Hoje, só os profissionais arriscam
provas cegas das comidas ou bebidas. Mas, mesmo aí, são cada vez mais os olhos
que comem, pelo investimento no impacto decorativo dos pratos, pelo requinte do
design ou pela manipulação do próprio
sabor. Para não falar do tacto. A nossa distância da natureza é tão grande que
deixamos de saber coisas tão elementares como caminhar descalço, dobrar-se na
clareira e afastar mansamente as folhas da fonte para beber devagarinho, ou
acariciar a vida desprotegida que se avizinha de nós. Assim nos tornamos os analfabetos
emocionais que somos, resumia o cineasta Ingmar Bergman. Não será tempo de
voltarmos aos sentidos? Não será esta uma oportunidade propícia para os revitalizarmos?
Não é chegado o instante de compreender melhor aquilo que une sentidos e
sentido?
Redescobrir o tacto
Pensou-se, desde a Antiguidade clássica, que o primeiro dos sentidos
fosse o tacto, mesmo se ele aparece só em terceiro lugar na escala que Aristóteles
apresentava então. Na ordem da criação ele tem certamente a primazia. O desenvolvimento
dos sentidos no fecto começa provavelmente com o tacto. Depois, com o nascimento,
é também através do contacto físico que experimentamos a realidade: o frio e o calor,
o familiar e o estranho, o desconforto e o consolo. Todo o objecto vem avaliado
pelo nascituro através do tacto, que para isso o leva inevitavelmente à boca e às
mãos. Muito legitimamente, o tacto vem descrito como o nosso grande olho primeiro.
A pele recobre o nosso corpo, da cabeça aos pés. Ela divide e ao mesmo tempo
une o mundo exterior e o interno. A pele lê a textura, a densidade, o peso e a temperatura
da matéria. O sentido do tacto conecta-nos com o tempo e a memória: através das
impressões do tacto fazemos intermináveis viagens sem as quais não seríamos quem
somos. O tacto permite que não esbarremos apenas uns contra os outros, mas que existam
encontros. Por isso, a pergunta que um dia Jesus fez no meio de uma multidão compacta
continua a ser significativa: quem me tocou? Os discípulos bem tentavam,
em vão, dissuadi-lo, lembrando que uma massa de gente o apertava e tocava de todos
os lados. Mas o que Jesus afirma é que há um tocar e um tocar.
As mãos são um organismo complexo, são um delta no qual desemboca
uma vida que vem de muito longe, para transformar-se numa torrente imensa de acção.
Há uma história das mãos; têm por direito próprio a sua beleza; assiste-lhes o direito
de ter o seu próprio desenvolvimento, seus desejos próprios, seus sentimentos, escreveu
Rainer Maria Rilke. E o que dizemos das mãos podemos dizer da pele. A nossa autobiografia
é assim também uma história da pele e do tacto, da forma como tocamos ou não, da
forma como fomos e não fomos tocados, mesmo se essa continua, em grande medida,
um relato submerso, em que não pensamos. E, contudo, ela tem tanto a ensinar-nos.
Existe um tipo de conhecimento, não apenas na primeira infância, mas pela vida
fora, que só nos chega através do tacto.
O pintor Miró falava sempre da origem táctil da sua arte. Na
juventude, em Barcelona, teve por mestre o arquitecto Francisco Gali que,
embora sendo um académico muito convencional, era capaz de arriscar por
caminhos inesperados na iniciação dos seus estudantes. Miró confessa que não era
propriamente um virtuoso no desenho e que o seu mestre ajudou-o assim:
colocava-lhe uma venda nos olhos para que ele tocasse os objectos com os dedos e
não apenas com o olhar. Miró fechava então os olhos, agarrava uma pequena pedra,
tacteava-a, palpava-a, revirava-a várias vezes nas suas mãos. E desenhava-a. O pintor
catalão dizia-se incapaz de chegar à representação do mundo de outra maneira». In
José Tolentino Mendonça, A Mística do Instante, O Tempo e a Promessa, Colecção
Poéticas do Viver Crente, Série JTM, Paulinas Editoras, 2014, ISBN
978-989-673-396-4.
Cortesia de Paulinas/JDACT