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Foi então que Martinho Rodrigues, bispo do Porto, sentindo-se diminuído na sua
dignidade e autoridade, apelou para a intervenção do papa. Sentava-se nessa
altura no sólio pontifício Gregório X. De espírito conciliador, mas não admitindo
de forma alguma o menosprezo das instituições religiosas (tenha-se em vista a
excomunhão que por duas vezes lançou sobre o poderoso Frederico II) mandou a
Portugal um seu legado, João Abbeville, incumbido de estudar as causas do
dissídio e resolvê-lo, se para tanto houvesse ensejo. Era Abbeville pessoa
prudente, de espírito sensato, tolerante. Graças aos esforços que desenvolveu
no desempenho da delicada missão de que fora encarregado, logrou estabelecer
entre as partes desavindas, senão a harmonia completa, pelo menos um armistício
confortável, delimitados ambos os poderes convenientemente. Durante três anos,
devido a isso, pôde Sancho II gozar de relativa tranquilidade, sem empecilhos
de maior. O moço monarca ocupou-se então do desenvolvimento da agricultura e do
povoamento do reino. Já nesse tempo no seu cérebro agudo, de notável visão,
flutuaria o sonho da constituição de uma organização de marinha de guerra, tão
necessária para reprimir as atrevidas investidas da pirataria berbere e
moirisca contra algumas das povoações litorâneas, onde faziam autênticas razias.
Entretanto,
no seio da corte as dissenções continuavam em luta subterrânea e silenciosa. A
nobreza, que Afonso tão bem soubera conter em respeito, tomando por fraqueza o
espírito indulgente de Sancho II, não perdia o ensejo de, com as suas mãos
calçadas de guantes de ferro, dilacerar o poder real. Por seu turno, o
armistício com o clero quebrara-se, não por culpa do soberano, preocupado sobretudo
em expulsar do reino os moiros, ou conquistar para a pátria os últimos redutos
sarracenos que ainda perduravam no reino, mas por insensatez de certos validos que
abusavam, em nome do rei, das regalias que usufruíam. O irmão de Sancho, Afonso
(mais tarde rei sob o título de Afonso III), dizem uns que descontente com os
negócios da governação pública, enquanto outros afirmam que por simples
espírito de aventura, partiu para França, acompanhado por diversos fidalgos
ávidos de novidade e, possivelmente, malquistados com a pátria. Os ministros,
que temiam fosse o príncipe influenciado e aproveitado algum dia pelos inimigos
do rei para qualquer revolta contra este, rejubilaram com o facto. Era mais um
perigo que ficava temporariamente afastado, no mínimo durante o tempo que ele
se conservasse no estrangeiro.
As
façanhas de guerreiro praticadas pelo monarca não faziam esquecer aos
descontentes as suas faltas na governança. E à frente desses elementos
desgostosos figuravam sempre os bispos, ressabiados com certas medidas reais. A
luta irrompeu de novo entre o alto clero e a coroa, antes, entre os ministros e
o bispo de Lisboa, Soeiro Gomes. Era este uma figura de prestígio que muito
contribuíra para a tomada de Alcácer do Sal aos moiros, pois foi ele quem
convidou os cruzados a pararem em Lisboa, incitando-os a realizar a triunfante
expedição». In Américo Faria e Herdeiros, 1958, Dez soberanos destronados, Grandes
Soberanos Destronados, Edições Parsifal, Lisboa, 2014, ISBN 978-989-8760-00-5.
Cortesia
de Parsifal/JDACT