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O importante não é aquilo que
fazem de nós, mas que nós mesmos fazemos do que os outros fizeram de nós. In
Jean.Paul Sartre
«(…) E estes três, os da dinastia terceira, acabaram também por ir no primeiro
de Dezembro de mil seiscentos e quarenta, cinquenta em nove anos depois de cá
terem entrado. Tudo é uma questão de tempo e até as coisas más se vão embora e
eis que retornamos ao fio da meada, já que falávamos de coroações, das duas a
que este assistiu, onde exibia com todo o orgulho a quinquilharia militar da
farda de cerimónia do Exército Real, bonita farda, em sentido, primeiro, para a
revista e no desfile, depois, mostrando ao mundo a grandeza do nosso Império, orgulho
de todos nós, a passar aos olhos dos convidados das outras nações, bem mais pequenas
em terras, umas, e outras da mesma grandeza ou até maiores, uma, a do reino
britânico, maior do que nós, não muito, mas maior. Felicidade estampada no rosto
patriota enquanto passava à frente deles, o cheiro de toda a hierarquia unida num
só momento e ele ali a passar, mais um a fazer número, ou talvez não porque é bem
provável que o monarca soubesse o nome completo de todos os que o serviam e morriam
por ele, da mais alta patente à mais baixa, do continente às Áfricas, a Goa, a Damão,
a Diu e Timor-Leste, esses não estavam nas coroações, pois não se podia deixar
o pecúlio abandonado. Este que aqui jaz já era morto antes de morrer, antes de o
coração parar de bater, este desde o último Outubro que passou que morreu,
desde que optara por não mais sair de casa e pouco comer e beber. Não pelo
desgosto de não poder desfilar em mais coroações de soberanos, porque isso
acabara para sempre, nada disso, orgulhava-se de ser monárquico, servira sempre
a reis e não o faria a presidentes disso a que chamavam República, jamais. Não
passava tudo de um antro de podridão com cheiro a bafio e corrupção, modos
modernos de sermos todos iguais e chegarmos ao poder, mesmo vindos de lado nenhum,
para fazermos progredir as nossas sociedades financeiras e os bolsos dos nossos
cidadãos amigos e esquecermos que somos todos iguais. Não era por nada disso. A
sua querida monarquia já devia dois reinados à nova República, estava moribunda,
mas isso não lhe deu tanto desgosto quanto a traição do seu filho mais velho, o
primeiro macho que abraçou com ternura e orgulho, exactamente o que encomendara
a Deus, como todos fazemos quando vemos as mulheres grávidas. Um valente com um
feitio igual ao seu e pose militar que despachou para a academia logo que teve
idade, para servir El-Rei e os seus descendentes onde o mandassem lutar pelos
interesses soberanos da nossa Pátria, mãe de todos os nossos contentamentos, proveitos
e glórias a quem devemos lealdade, veneração e amor. Nada fazia prever o lado
oculto de uma força em ascensão que o acompanhava de perto e lhe incutia erros ímpios
e um massacre dos seus valores e dos do brasão da família. Foi um dos golpistas
da Revolução de Outubro, um golpe de Estado que destituiu o progresso e instalou
a devassidão, em seu entender, que acabou com os valores morais e chamou o
desgoverno. Um filho criado com todo o amor e dedicação da mãe e toda a formação
de carácter ético do pai, varreu por terra todo o trabalho, mostrando-lhe pela
primeira vez o sentimento de falhar uma missão..., a de educar. Portugal tem de
acompanhar o que se passa lá fora, a evolução, disse-lhe uma vez o filho, a
última vez que falaram. Portugal acabou hoje, para vergonha nossa e por culpa
tua para toda a tua vida, disse-lhe este que aqui jaz, e nunca mais se falaram.
Nem mesmo por alturas da morte deste o filho apareceu a chorar o pai. As ideias
são muralhas ao entendimento entre uns e outros, sejam de que tipo forem,
políticas, religiosas, sexuais, se é que as há porque neste mundo de agora
sabe-se pouco disso. Não mais se viram desde o golpe e desde aquela conversa,
pequena, mas com mais assunto do que se disse aqui, se sabiam que nunca mais se
veriam até ao fim dos tempos, seria diferente... ou talvez não.
Aquele que ali vem a entrar no cemitério é o filho que atraiçoou o pai
pelos seus ideais, que o matou de desgosto aos trinta e nove anos, já lá vão
vinte e dois, faz hoje. Três de Abril de mil novecentos e trinta e três, nesta
data em que, de madrugada, nasceu Mariana Silveira, filha do filho que
atraiçoou o pai, o nosso coronel José Silveira, que aqui chega ao familiar
jazigo em que repousa seu pai e três irmãos dele, todos militares, patriotas e
monárquicos que pereceram no tempo dos reis, bons tempos. Queda-se a olhar para
dentro, para as urnas mortuárias, marejam os olhos enquanto o passado passa por
eles directo ao coração. Só as coisas boas, que é das que se sente mais falta.
É matreiro o nosso passado em certas horas, só deixa ver o que lhe interessa
que nos comova, as boas alturas dos bons tempos, censurados também eles com
mestria para nos fazer vergar em sentimentos de nostalgia bucólicos que nos
marejam os olhos a uns e fazem soluçar outros, mas não ao nosso coronel, que
não é de pranto fácil. Queda-se pelo marejar enquanto revive os bons instantes
que passou com o pai. Se não morresse tão novo talvez chegasse a general, como
almeja um dia o coronel, como almejamos todos galgar ao topo da nossa lida até
não haver mais para trepar, sem bater no tecto, nem errar algum degrau. Talvez
até chegasse a coronel se não se tem finado tão viçoso do desgosto que o
acometeu. Aqui veio o coronel prestar contas que deviam ter sido resolvidas
durante a existência dos dois deste lado, mas ninguém sabe quando uns e outros
vão para o outro, é sempre uma viagem sem data de marcha, ou então saldar-se-iam
as dívidas que temos uns com os outros e que não são poucas... ou talvez não». In
Luís Miguel Rocha, Um País Encantado, Planeta Editora, Lisboa, 2005, ISBN
972-731-176-8.
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