jdact
Se isto é um homem
«Vós que viveis tranquilos
nas vossas casas aquecidas,
vós que encontrais regressando à noite
comida quente e rostos amigos:
considerai se isto é um homem
quem trabalha na lama
quem não conhece paz
quem luta por meio pão
quem morre por um sim ou por um não.
Considerai se isto é uma mulher,
sem cabelos e sem nome
sem mais força para recordar
vazios os olhos e frio o regaço
Como uma rã no Inverno.
Meditai que isto aconteceu:
recomendo-vos estas palavras,
esculpi-as no vosso coração
estando em casa andando pela rua,
ao deitar-vos e ao levantar-vos;
repeti-as aos vossos filhos.
Ou então que desmorone a vossa casa,
que a doença vos entreve,
Que os vossos filhos vos virem a cara».
«(…) Ainda nos falta aprender
muitas coisas, mas muitas outras já as aprendemos. Já temos uma certa ideia da
topografia do Lager; este nosso Lager é um quadrado com cerca de
seiscentos metros de lado, cercado por duas redes de arame farpado, sendo a
interior percorrida por corrente de alta-tensão. É constituído por sessenta
barracas de madeira, que aqui se chamam Blocks,
uma dezena das quais em construção; a estas acrescentam-se o corpo das cozinhas,
que é de alvenaria; uma horta experimental, gerida por um destacamento de Häftlinge
privilegiados; as barracas dos duches e das latrinas, uma por cada grupo de
seis ou oito Blocks. Para além disso,
alguns Blocks são destinados a funções
especiais. Primeiro, um grupo de oito, na extremidade leste do campo, constitui
a enfermaria e o posto médico; há depois o Block
24 que é o Krätzeblock, reservado aos sarnosos; o Block 7, onde nenhum Häftling comum
jamais entrou, reservado à Prominenz, isto é, à aristocracia, aos internados
que desempenham os cargos mais elevados, o Block
47, reservado aos Reichsdeutschs (os arianos alemães, políticos ou
criminosos); o Block 49,
exclusivamente para Kapos; o Black 12,
do qual metade, para uso dos Reichsdeutsche e Kapos, faz funções de Kantine, isto é, de posto de
distribuição de tabaco, insecticida e, ocasionalmente, outros artigos; o Block 37, que contém os escritórios centrais
e os serviços de trabalho; e finalmente o Block
29, que mantém as janelas sempre fechadas porque é o Frauenblock, o prostíbulo do campo, servido por raparigas Häftlinge
polacas e reservado aos Reichsdeutsche.
Os Blocks de habitação comum são divididos em duas zonas: num deles (Tagesraum),vive o chefe da barraca com
os seus amigos: contém uma mesa comprida, cadeiras, bancos; por todo o lado,
uma quantidade de objectos estranhos de cores vivas, fotografias, recortes de revistas,
desenhos, flores artificiais, bibelôs; nas paredes, grandes letreiros,
provérbios e breves poesias exortando à ordem, à disciplina, à higiene; num
canto, uma vitrina com os instrumentos do Blockfrisör
(barbeiro autorizado), as conchas para distribuir a sopa e duas vergastas de
borracha, uma maciça e outra oca, para manter a disciplina. O outro local é o
dormitório; não há outra coisa a não ser cento e quarenta e oito camas em
beliches de três andares, apinhadas, como celas de uma colmeia, de forma a
utilizar sem desperdícios todo o volume do local, até ao tecto, e divididas por
três corredores; aqui vivem os Häftlinge comuns, num total de duzentos,
duzentos e cinquenta por barraca, portanto, dois na maioria das tarimbas, que
são de tábuas de madeira móveis, equipadas com enxergão de palha muito fino e
com dois cobertores cada. Os corredores de passagem são tão estreitos, que duas
pessoas passam com muito dificuldade; a superfície total de chão é tão escassa,
que os habitantes do mesmo Block não
a podem ocupar ao mesmo tempo, sem que pelo menos metade esteja deitada nas camas.
Daí, a proibição de entrar num Block
ao qual não se pertence. No meio do Lager
está a Praça da Chamada, enorme, onde nos reunimos de manhã, para constituirmos
as esquadras de trabalho, e à noite, para sermos contados. Em frente à Praça da
Chamada há um canteiro com a relva cuidadosamente cortada, onde são montadas as
forcas quando é preciso.
Cedo aprendemos que os
hóspedes do Lager estão divididos em três
classes: os criminosos, os políticos e os judeus. Todos andam com farda às
riscas, todos são Häftlinge, mas os criminosos trazem ao lado do número, cosido
no casaco, um triângulo verde; os políticos, um triângulo vermelho; os judeus,
que são a maioria, trazem a estrela judaica, vermelha e amarela. Há também os
SS, mas poucos e fora do campo, e vêem-se relativamente poucas vezes: os nossos
verdadeiros patrões são os triângulos verdes, que têm liberdade de acção sobre
nós, e também os das outras duas classes dispostos a ajudá-los: que não são poucos.
E aprendemos mais coisas ainda, mais ou menos rapidamente, conforme o carácter
de cada um; a responder Jawohl, a não
fazer perguntas, a fingir sempre ter percebido. Aprendemos o valor dos
alimentos; agora, também já raspamos cuidadosamente o fundo da marmita depois
do rancho, e mantemo-la debaixo do queixo ao comermos o pão para não desperdiçar
as migalhas. Também sabemos agora que não é a mesma coisa receber a concha de
sopa da superfície ou do fundo da selha, e já somos capazes de calcular, na
base da capacidade das várias selhas, qual o lugar mais conveniente onde ficar
no momento de ir para a bicha». In Primo Levi, Se Questo è um Uomo, Einaudi,
Turim, 1958, Se Isto é um Homem, 1998, Tradução de Simonetta Neto, 10ª edição,
2013, Teorema, ISBN 978-972-695-945-8.
Cortesia de
Teorema/JDACT