Calecute
«(…)
Fogo, bradou o capitão. Fogo, gritava já rouco, uma e outra vez do
alto do chapitéu, varejado de raiva, entre a névoa de fumo e o cheiro seco da pólvora
que empestava a Capitânea, a nau-capitã,
cabeça de toda a armada. Fogo, repetia incansavelmente num grito de batalha.
E os canhões de bronze com as armas d'el-rei praguejavam aos céus com estrondo,
cuspindo bolas de ferro fundido que destruíam impiedosamente as construções da
cidade. Cabral vingava assim a morte de mais de cinquenta dos seus homens, vítimas
duma cobarde traição de Glafer, o samorim (o rajá de Calecute era conhecido
como Malayalam Samuttiri, senhor dos mares, tendo os navegadores aportuguesado o
termo para samorim), senhor daquelas terras. Entre eles, Vaz de Caminha, que,
mais que um devoto companheiro, fora seu amigo pessoal. Vivia-se o triste dia de
17 de Dezembro do ano do Senhor de 1500.
Meses
antes, o samorim tinha autorizado a instauração de uma feitoria comercial no porto
de Calecute, mas tal licença tinha gerado desde logo um forte mal-estar entre os
usuais mercadores hindus e, sobretudo, entre os islamitas que controlavam o
comércio daqueles mares. O descontentamento fora de tal monta que, sentindo-se
coagido, o todo-poderoso daquelas terras entendera por bem virar o seu rosto divino
para o lado, deixando que uma horda de sujeitos a soldo matasse os portugueses presentes
na feitoria. Sabia que a represália dos portugueses seria inevitável, mas também
sabia que a armada não tinha homens suficientes para virem a terra pedir meças com
os seus guerreiros, tanto mais que tinha a mourama do seu lado. O que não contava
era com o alcance e ferocidade dos canhões da armada, um poder de fogo nunca visto
por aquelas paragens.
Logo
no primeiro dia de bombardeio, uma parte dos muros de suporte da povoação caíram
por terra. Imensas habitações desmoronaram sobre as gentes que ficaram soterradas
nos pedregulhos. Pedras, madeiras, barro, metais, confundiram-se nos destroços com
o sangue escuro dos que tinham sucumbido à avalanche. Os corpos ficaram esmagados,
com a carne rasgada e as vísceras a servir de repasto aos animais pestjlentos
que saíam dos buracos infectos e sombrios para conquistar o seu naco de carne morta.
As armas caíram por terra, os estandartes tombaram, sem orgulho, junto aos soldados
mortos. Calecute não tinha muralhas, era uma terra de comércio aberta ao mar.
Dos barcos avistava-se todo o casario e podia-se ver como os pelouros
impiedosos continuavam a vergastar a cidade, derrubando casas, soterrando as numerosas
e amedrontadas famílias que pereciam entre rezas aos seus deuses. As suas vidas
acabavam ali. Estonteados, não gritavam. Sem entenderem porque o mundo lhes desabava
na cabeça, limitavam-se a procurar esconderijo nos lugarejos mais sombrios para
que a morte não os enxergasse nos olhos. Apenas se perguntavam porque estavam zangados
os céus, porque discutiam os deuses. E as esferas de ferro entravam enraivecidas
paredes dentro, retalhando as casas, derribando-as, transformando-as em tumbas
onde a morte sorria. Os canhões não estancavam o seu fogo. Fundeadas ao largo da
povoação, com a Cruz de Cristo nas velas, quatro das cinco embarcações da
armada portuguesa disparavam os seus canhões alternadamente, empenhadas que estavam
em aniquilar aquela terra de pagãos assassinos.
As embarcações
árabes que estavam junto do porto foram igualmente abalroadas, por temor que estas
tivessem recolhido soldados durante a noite. Algumas ripostaram, mas a armada que
já se posicionara estrategicamente para ter o domínio da baía, disparou com tal
intensidade, tão certeira na sua mira, que mesmo antes de nascer o sol já todos
os barcos daquele porto tinham sucumbido sem honra de combate digno desse nome.
Uma embarcação de maior porte, semelhante a uma nau portuguesa, ainda esboçou um
ataque à nau Capitânea, mas Nicolau
Coelho, capitão da caravela São Pedro, atento a tudo o que se agitava em seu redor,
disparou uma descarga de artilharia a curtíssima distância, deixando-a tolhida,
com o casco fendido e a meter água. A danação dos portugueses era de tal monta que
o capitão acabou por ceder aos urros dos seus homens e ordenar uma abordagem.
Indisciplinados, com os olhos raiados de sangue, lançaram os cabos de abordagem
e saltaram a bordo ainda a arder na febre da vingança, procurando uma luta corpo
a corpo, esgrimindo espadas e talhando a carne dos que ainda ofereciam peleja
digna desse nome. Os mais fortes levavam machados pesados que decepavam cabeças
e abriam peitos. Era tanto o sangue, que o convés se tornava escorregadio sob as
botas dos oficiais ou sob os pés descalços da marinhagem. Alguns levavam
garrafas cheias de pólvora e chumbo, com o pavio pendente, chegavam-lhes fogo e
atiravam o vasilhame mortal para o meio das hostes inimigas. As explosões
chacinavam tudo à sua volta indiscriminadamente, os homens tombavam no chão como
pássaros mortos, desfigurados, esquartejados; as espadas aliviavam os que sofriam,
trespassando-os, aligeirando-lhes a morte. Muitos dos homens do samorim saltaram
para o mar sem dignidade, temerosos da carga animalesca que lhes invadira a embarcação.
Os outros, apanhados na fuga, eram simplesmente esventrados pelo metal frio das
espadas e depois degolados. Alguns foram agrilhoados num poste e atormentados até
à morte. Vamos enforcar o samorim, com as tripas do último perro índio, gritavam
os soldados em histeria. As embarcações, ou a parca amostra que delas restava,
estavam, entretanto, a ser saqueadas e incendiadas. Dez navios islâmicos que tinham
lançado âncora no porto foram também arrestados, tendo-lhes sido confiscada a mercadoria
e acabada a tripulação sem piedade. Alguns dos prisioneiros a quem reconheciam a
arte das armas, foram capados e os sexos mutilados metidos bocas adentro antes de
serem jugulados. As cabeças decepadas, algumas com as vergonhas ainda embutidas
entre os dentes, a escorrerem sangue, foram recolhidas em cestos e colocadas num
pequena embarcação, para que pudessem dar a terra num claro aviso aos traidores
de Portugal. Foram centenas de cabeças desprendidas dos corpos». In João
Morgado, Vera Cruz, Clube do Autor, Lisboa, 2015, ISBN 978-989-724-207-6.
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