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«(…) Aí, o que estivesse a ler
poderia ouvir as palavras exactas de um homem morto há muito e transformado em pó.
Isto deu início ao período da minha vida a que chamo os Tempos Ofegantes,
durante os quais eu liguei o poder de conquistar a morte, através da utilização
destas marcações, ao meu desejo de tirar a minha capa e deitar-me ao lado de Giannon.
Eu senti a possibilidade de me transcender utilizando o meu corpo e a minha
mente, não compreendendo ainda o conceito de alma como algo que necessitasse da
intermediação de um padre cristão. O poder imortal das palavras possuiu o meu
espírito como uma voz no ouvido de um louco. Apesar de não vislumbrar o meu futuro
nem com metamorfoses, nem com espadas mágicas, coisas que me pareciam remotas e
excepcionais, fiquei doente desejando ter os conhecimentos de Giannon e ser por
ele reconhecido. Pedi ao mundo em redor, acima e por baixo, para me dar o poder
de transformar a voz de um homem em marcações imutáveis e de me libertar de
qualquer obstáculo que me impeça de obter este poder. Deixei ramos de azevinho
e uma pena de corvo na poça e nas árvores sagradas, pedindo que Giannon, cuja
cara tinha ossos fortes, fosse o meu professor.
Nessa altura, a minha túath tinha ouvido falar pouco sobre os
cristãos, excepto nas feiras onde os homens tonsilados falavam do herói Jesus e
mostravam às pessoas as novas técnicas de cultivo e de reprodução de animais.
Os monges estavam a ganhar fama com estes novos métodos e ferramentas que
facilitavam certas tarefas. Eles trouxeram plantas da Bretanha, que cresciam
muito bem em terra sedenta, e só pediam às pessoas que amassem a plenitude que estas
melhorias traziam e que participassem na recitação de frases que os monges
ensinavam, tais como a declaração da crença nos três deuses em um. As nossas
vidas eram mais difíceis nesses tempos porque tínhamos de trabalhar arduamente para
comer um pouco. Não entendíamos os benefícios do jejum por razões espirituais;
o jejum nada mais era do que fome extrema imposta sobre nós por falta de
comida. Havia anos em que os idosos e os recém-nascidos morriam antes do seu
tempo por causa da fome. Para melhorar as nossas vidas e ter melhores colheitas
com os novos instrumentos e métodos, o que importava era alterar os nossos rituais
e orações para agradar aos nossos benfeitores.
Nós não renegámos os nossos
próprios espíritos, que ainda vivem nas árvores e nas poças, independentemente
daquilo que proclamamos aos monges. Nós acreditávamos que os espíritos da nossa
terra eram elementos permanentes, como o ar e a água. Eles não tinham qualquer
motivo para ter ciúmes se fizéssemos novos sons, louvando os novos heróis. O
homem de terras longínquas que, segundo se dizia, tinha derrotado a morte por
aqueles que o seguiam, não ameaçava os espíritos que se formavam no carvalho e
no teixo. Tal como a árvore na qual Nosso Senhor Jesus Cristo foi sacrificado,
todas as plantas e animais e elementos tinham um papel a cumprir em todas as
aventuras e revelações. Não é nenhum mistério que os pelagianos, aqueles
cristãos que ensinavam que todas as coisas fazem parte de Deus e, portanto, são
boas, tenham encontrado um acolhimento facilitado nesta terra onde cada
pauzinho é divino. E eu tenho às vezes pena que Patrício nos tenha sido enviado
para nos livrar desses hereges. Deus me perdoe se estou a blasfemar. Estou
humildemente a recontar os acontecimentos, tal qual eles ocorreram, antes da
minha compreensão da autoridade misericordiosa da Igreja. Até agora, como os
pelagianos, eu não entendo um Deus ciumento, porque se Ele fez todas as coisas,
então qualquer forma de louvor que protege as suas criações e não lhes é
destrutiva ou cruel tem que Lhe agraciar. Mas eu juro que não sou uma pelagiana».
In
Kate Horsley, Confissões de uma Freira Pagã, tradução de Mariana Pereira,
Ésquilo, Lisboa, 2002, ISBN 972-860-518-8.
Cortesia de Ésquilo/JDACT