«A
única coisa que Alice pôde ver de seu pai são as solas dos seus sapatos, de um castanho
desbotado, marcadas pela terra das ruas por onde ele passara. Ela tem permissão
para ir correndo pela calçada encontrar o pai quando ele chega do trabalho no
fim da tarde. No Verão, às vezes sai de camisola, as suas pregas prendendo-lhe
os joelhos. Mas hoje é Inverno, Novembro, talvez. As solas dos sapatos estão em
volta de um galho de árvore no fundo do jardim. Ela vira a cabeça bem para
trás. As folhas farfalham. Ouve a voz do pai. Um grito brota como lágrimas da
sua garganta quando a corda grossa cor de laranja vem caindo, ligeiramente
enroscada nos galhos como uma cobra. Apanhou? Ela pega a corda encerada com a
mão enluvada. Apanhei. Os galhos sacodem balançados pelo seu pai. Ele põe a mão
no ombro de Alice e abaixa-se para pegar o pneu. Ela fica fascinada com o
relevo da textura por dentro da borracha preta e pesada. É isso que estrutura o
pneu, tinha dito o homem da loja. O manchão liso sob o relevo da textura dá-lhe
arrepio, mas ela não sabe bem porquê. Seu pai enrola a corda cor de laranja em
volta do pneu e dá um nó apertado. Posso balançar-me agora?, pergunta,
segurando o pneu. Não. Tenho de testar primeiro. O pai salta no pneu, testando
para ver se está bem seguro. Ela olha para cima e vê o galho sacudir, depois
olha para o pai. E se ele cair? Mas ele já está descendo e levantando-a, seus
ossos pequenos, brancos e flexíveis como os dos pássaros.
Alice
e John estão num café de um vilarejo de Lake District. É início do Verão. Ela
pega num cubo de açúcar entre os dedos e, a luz por trás dele transforma os seus
cristais em células aglomeradas de um organismo complexo debaixo de um
microscópio. Sabia, diz John, que fizeram uma análise química dos cubos de
açúcar nos açucareiros dos cafés e descobriram traços de sangue, sémen, fezes e
urina? Alice mantém-se séria. Não sabia, não. Com os cantos da boca caídos,
John nota o ar distraído dela. Alice está com soluço, e ele diz-lhe que para
parar de soluçar é beber pequenos goles de água do copo. No horizonte ao longe,
um avião risca uma linha branca no céu. Ela olha para as mãos de John, cortando
um pedaço de pão com a mão e, subitamente, percebe que ama aquele homem. Olha
pela janela e vê pela primeira vez a linha branca riscada pelo avião, a essa
altura já toda esgarçada. Pensa em mostrar isso para John, mas não mostra.
O
sexto Verão da vida de Alice foi quente e seco. A sua casa tinha um jardim grande,
e a janela da cozinha dava para o quintal e esse jardim, de modo que sempre que
ela e as irmãs brincavam lá fora podiam ver a mãe observando-as. O calor sufocante
tinha secado os reservatórios, coisa nunca vista na Escócia, e ela ia com o seu
pai até uma bomba no fim da rua buscar água em tonéis brancos. A água ecoava no
fundo vazio dos tonéis. Entre a casa e o final do jardim havia uma pequena
horta, com ervilhas, batatas e beterrabas tentando sobreviver no solo duro. Num
dia especialmente lindo naquele Verão, Alice tirou a roupa, pegou num bocado
daquela terra e esfregou-a no corpo inteiro como se fossem listras de tigre.
Ela assustou as crianças nervosas e ingénuas do vizinho rugindo para elas pela
sebe até que a sua mãe abriu a janela e gritou para que ela parasse com aquilo
imediatamente. Então Alice saiu dali e foi juntar uns gravetos e folhas para
construir uma tenda em forma de cone. A sua irmã mais nova ficou fora da tenda,
choramingando para entrar, mas Alice disse que ela só poderia entrar se fosse
um tigre. Beth olhou para o chão e para sua roupa, depois para a cara da mãe na
janela da cozinha. Alice ficou sentada ali na escuridão húmida com o corpo cheio
de listas, resmungando e olhando para o canto do céu que dava para ver pelo
alto da tenda». In Maggie O’Farrell, Depois de tu partires, 2000, Editorial Presença,
colecção Grandes Narrativas, nº 255, 2004, ISBN 978-972-233-241-5.
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