Cortesia
de wikipedia
«(…)
O burro voltou a cabeça, fazendo brilhar no escuro os olhos salientes, depois
sacudiu com força as orelhas peludas e tornou a meter o focinho na manjedoura,
a tentear os restos da ração com os beiços grossos e sensíveis. José
aproximou-se da talha das abluções, inclinou-a, fez correr a água sobre as
mãos, e depois, enquanto as enxugava na própria túnica, louvou a Deus por, em
sua sabedoria infinita, ter formado e criado no homem os orifícios e vasos que
lhe são necessários à vida, que se um deles se fechasse ou abrisse, não
devendo, certa teria o homem a sua morte. Olhou José o céu, e em seu coração
pasmou. O sol ainda tarda a despontar, não há, por todos os espaços celestes, o
mais lavado indício dos rubros tons do amanhecer, sequer uma pincelada leve de
róseo ou de cereja mal madura, nada, a não ser, de horizonte a horizonte, tanto
quanto os muros do pátio lhe permitiam ver, em toda a extensão de um imenso
tecto de nuvens baixas, que eram como pequenos novelos espalmados, iguais, uma
cor única de violeta que, principiando já a tornar-se vibrante e luminosa do
lado donde há-de romper o sol, vai progressivamente escurecendo, mais e mais,
até se confundir com o que, do lado de além, ainda resta da noite. Em sua vida,
José nunca vira um céu como este, embora nas longas conversas dos homens velhos
não fossem raras as notícias de fenómenos atmosféricos prodigiosos, todos eles
mostras do poder de Deus, arcos-íris que enchiam metade da abóbada celeste,
escadas vertiginosas que um dia ligaram o firmamento à terra, chuvas
providenciais de manjar-do-céu, mas nunca esta cor misteriosa que tanto podia
ser das primordiais como das derradeiras, flutuando e demorando-se sobre o
mundo, um tecto de milhares de pequenas nuvens que quase se tocavam umas às
outras, espalhadas em todas as direcções como as pedras do deserto.
Encheu-se-lhe o coração de temor, imaginou que o mundo ia acabar, e ele posto
ali, única testemunha da sentença final de Deus, sim, única, há um silêncio
absoluto na terra como no céu, nenhum rumor se ouve nas casas vizinhas, uma voz
que fosse, um choro de criança, uma prece ou uma imprecação, um sopro de vento,
o balido duma cabra, o ladrar dum cão, Por que não cantam os galos, murmurou, e
repetiu a pergunta, ansiosamente, como se de cantarem galos é que pudesse vir a
última esperança de salvação. Então, o céu começou a mudar. Pouco a pouco,
quase sem perceber-se, o violeta tingia-se e deixava-se penetrar de rosa-pálido
na face interior do tecto de nuvens, avermelhando-se depois, até desaparecer,
estava ali e deixara de estar, e de súbito o espaço explodiu num vento
luminoso, multiplicou-se em lanças de ouro, ferindo em cheio e trespassando as
nuvens, que, sem saber-se porquê nem quando, haviam crescido, tornadas
formidáveis, barcas gigantescas arvorando incandescentes velas e vogando num
céu enfim liberto. Desafogou-se, já sem medos, a alma de José, os olhos
dilataram-se-lhe de assombro e reverência, não era o caso para menos, de mais
sendo ele o único espectador, e a sua boca proferiu em voz forte os louvores
devidos ao criador das obras da natureza, quando a sempiterna majestade dos
céus, tendo-se tornado pura inefabilidade, não pode esperar do homem mais do que
as palavras mais simples, Louvado sejas tu, Senhor, por isto, por aquilo, por
aqueloutro. Disse-o ele, e nesse instante o rumor da vida, como se o tivesse
convocado a sua voz, ou apenas entrando de repente por uma porta que alguém de
par em par abrisse sem pensar muito nas consequências, ocupou o espaço que
antes pertencera ao silêncio, deixando-lhe apenas pequenos territórios
ocasionais, mínimas superfícies, como aqueles breves charcos que as florestas
murmurantes rodeiam e ocultam. A manhã subia, expandia-se, e em verdade era uma
visão de beleza quase insuportável, duas mãos imensas soltando aos ares e ao
voo uma cintilante e imensa ave-do-paraíso, desdobrando em radioso leque a roda
de mil olhos da cauda do pavão-real, fazendo cantar perto, simplesmente, um
pássaro sem nome.
Um
sopro de vento ali mesmo nascido bateu na cara de José, agitou-lhe os pêlos da
barba, sacudiu-lhe a túnica, e depois girou à volta dele como um espojinho
atravessando o deserto, ou isto que assim lhe parecia não era mais do que o
aturdimento causado por uma súbita turbulência do sangue, o arrepio sinuoso que
lhe estava percorrendo o dorso como um dedo de fogo, sinal de uma outra e mais
insistente urgência. Como se se movesse no interior da rodopiante coluna de ar,
José entrou em casa, cerrou a porta atrás de si, e ali ficou encostado por um
minuto, aguardando que os olhos se habituassem à meia penumbra. Ao lado dele, a
candeia brilhava palidamente, quase sem irradiar luz, inútil. Maria, deitada de
costas, estava acordada e atenta, olhava fixamente um ponto em frente, e
parecia esperar. Sem pronunciar palavra, José aproximou-se e afastou devagar o
lençol que a cobria. Ela desviou os olhos, soergueu um pouco a parte inferior
da túnica, mas só acabou de puxá-la para cima, à altura do ventre, quando ele
já se vinha debruçando e procedia do mesmo modo com a sua própria túnica, e
Maria, entretanto, abrira as pernas, ou as tinha aberto durante o sonho e desta
maneira as deixara ficar, fosse por inusitada indolência matinal ou
pressentimento de mulher casada que conhece os seus deveres. Deus, que está em
toda a parte, estava ali, mas, sendo aquilo que é, um puro espírito, não podia
ver como a pele de um tocava a pele do outro, como a carne dele penetrou a
carne dela, criadas uma e outra para isso mesmo, e, provavelmente, já nem lá se
encontraria quando a semente sagrada de José se derramou no sagrado interior de
Maria, sagrados ambos por serem a fonte e a taça da vida, em verdade há coisas
que o próprio Deus não entende, embora as tivesse criado». In José Saramago, O Evangelho
segundo Jesus Cristo, Editorial Caminho (o Campo da Palavra), Lisboa, 1991,
ISBN 972-210-524-8.
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