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«(…)
Isso foi antes de ela ser raptada e praticamente feita em pedaços, disse Eve,
levantando-se. Volto já. Preciso de ir à casinha. Alec agarrou-lhe o pulso. Ela
arqueou as sobrancelhas interrogativamente. Meu anjo, disse ele, beijando-lhe
as costas da mão. Quando te digo para parares de pensar neles, não é porque
queira que vivas num mundo de fantasia. Quero apenas que vejas o que há de bom em
teu redor. Viste uma mãe cuidar do seu bebé, mas não reparaste no milagre que
isso encerra, pois estavas demasiado concentrada no demónio sentado a seu lado.
Não lhes dês poder para que te estraguem o dia. Eve franziu o sobrolho e
assimilou as palavras dele, acenando depois com a cabeça, em sinal de anuência.
Se Alec vivia com a Marca há uma eternidade e conseguia ainda ver milagres,
também ela poderia tentar. Volto já, disse. Ele largou-a. Depois de passar cuidadosamente
pelos outros espectadores sentados na mesma bancada, Eve subiu a correr os amplos
degraus de cimento. Ainda ficava maravilhada com a velocidade, a força e
agilidade que ganhara graças à marca gravada na parte superior do braço. Sempre
fora atlética, mas agora era a supermulher. Bom..., não podia voar, mas
conseguia saltar alto como o raio. Conseguia também ver no escuro e arrombar
portas trancadas, habilidades que nunca imaginara vir a necessitar ou a
apreciar. Eve alcançou o átrio e seguiu as indicações até aos lavabos mais próximos.
A fila chegava à porta. Felizmente não estava desesperada. Precisava sobretudo
de sair do seu lugar. Por isso esperou pacientemente, baloiçando-se sobre as
havaianas, de mãos nos bolsos. De vez em quando, uma brisa despenteava-lhe o
rabo-de-cavalo, arrastando consigo o cheiro do mal e almas em putrefacção, um
fedor pungente que lhe dava a volta ao estômago, algures entre o cheiro a
decomposição e o fedor da mer… fresca. Surpreendia-a o facto de os Intocados
não se aperceberem dele. Como era possível ter vivido vinte e oito anos da sua
vida num estado de absoluta ignorância? Como era possível que Alec vivesse há
séculos num estado de absoluta consciência? Mãe! O rapazinho à sua frente cruzava
as pernas e remexia-se furiosamente. Tenho de ir! O facto de a mulher parecer
irmã da criança não era motivo de grande surpresa. No Sul da Califórnia, muitas
mulheres que não envelheciam convertiam-se em caricaturas plastificadas da sua
versão juvenil. Esta era loura-oxigenada, com um bronzeado perfeito, seios demasiado
grandes para a sua constituição esguia e lábios volumosos e brilhantes. A mãe
olhou em redor. Deixa-me ir à casa de banho dos homens, implorou ele. Eu não
posso lá entrar contigo. Faço num instante! O rapaz devia ter uns 6 anos. Já
era suficientemente crescido para fazer xixi sozinho, mas Eve entendia a
preocupação da mãe. Uma criança fora assassinada numa casa de banho pública,
ali perto, em Oceanside, enquanto a tia a esperava cá fora. O demónio que
orquestrara tal horror usara o truque mais velho do mundo, fingir ser Deus. A
atormentada mãe hesitou durante muito tempo, acabando por acenar nervosamente
com a cabeça. Despacha-te. Podes lavar as mãos, aqui, na casa de banho das senhoras.
O rapaz passou pelos chafarizes a correr e enfiou-se na casa de banho dos
homens. Eve dirigiu um sorriso compadecido à mãe. A fila ia avançando
lentamente. Duas adolescentes reuniram-se a esta, atrás de si. Vestiam tops de
alças sobrepostos e calças de cós baixo, a grande moda do momento. Um cheiro a
perfume caro impregnava o ar em redor delas, atenuando de forma perfeita o
cheiro a decomposição. No estádio, a multidão rugiu. Um dos defesas laterais dos
Chargers era um lobisomem. Devia ter feito algo digno de aplausos a avaliar
pela ovação de alta frequência dos Infernais presentes no meio da multidão. Porque
está uma fila tão grande?, perguntou a rapariga atrás dela. Eve encolheu os
ombros, mas a mulher que estava à sua frente respondeu: as casas de banho acolá,
apontou para a esquerda com uma unha de gel, estão fechadas para obras. Nem de
propósito, Eve sentiu um formigueiro e depois um ardor na marca gravada no
deltoide. Suspirou e abandonou o seu lugar. Podes ficar com o meu lugar. Não
estou muito aflita. Obrigada, respondeu a adolescente. Eve dirigiu-se para a
esquerda, resmungando para consigo mesma: grandes férias. Mas também já estavas
saturada, querida, ronronou-lhe uma voz familiar. Eve olhou para o lado e viu
Reed Abel acertar passo com ela, com um sorriso demoníaco, que contradizia em
pleno as asas e a auréola que exibia de vez em quando para impressionar. O
irmão de Alec era um mal’akh
(mensageiro), mas tinha muito pouco de angélico». In Sylvia Day, Eve e as Trevas,
2009, tradução de Leonor Marques, 5 Sentidos, Porto Editora, Porto, 2015, ISBN
978-989-745-017-4.
Cortesia
5Sentidos/PEditora/JDACT