terça-feira, 19 de abril de 2016

Samarcanda. Amir Maalouf. «Omar fez sem dúvida mal em acompanhar o seu reparo de um gesto desdenhoso dirigido aos seus adversários. Estendem-se mãos, puxam-lhe pelas roupas, que se começam a rasgar»

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Poetas e Amantes
«(…) Uma questão de pró-forma; o homem não tem a mínima intenção de se apresentar. Está na sua cidade e é ele o inquiridor. Mais tarde, Ornar saberá a sua alcunha: chamam-lhe o Estudante da Cicatriz. De cacete na mão, com uma citação na boca, amanhã fará tremer Samarcanda. Por ora, a sua influência  não vai além destes jovens que o rodeiam, atentos à sua mais pequena palavra, ao mínimo sinal.  No seu olhar, um súbito clarão. Vira-se para os acólitos. Depois, triunfalmente, para a multidão. Exclama: por Deus, como pude não reconhecer Omar, filho de Ibraim Khayyam de Nichapur? Omar, a estrela do Khorassan, o génio da Pérsia e dos dois Iraques, o príncipe dos filósofos! Mima um profundo salamaleque, e faz rodopiar os dedos de ambos os lados do seu turbante, suscitando infalivelmente asgargalhadas dos basbaques. Como pude não reconhecer quem compôs este robai tão cheio de piedade e de devoção:

Acabas de quebrar o meu cântaro de vinho, Senhor.
Barraste-me a estrada do prazer, Senhor.
Derramaste no solo o meu vinho carmesin.
Deus me perdoe, estarás ébrio, Senhor?

Khayyam escuta, indignado, inquieto. Uma tal provocação é um apelo ao homicídio, ali mesmo. Sem perder um segundo, lança a sua resposta em voz alta e clara, para que ninguém na multidão se deixe enganar: ouço essa quadra da tua boca pela primeira vez, desconhecido. Mas eis um robai que realmente compus:

Nada, eles nada sabem, nada querem saber.
Repara nestes ignorantes, eles dominam o mundo.
Se não fores um deles, chamam-te incréu.
Não lhes ligues, Khayyam, segue o teu caminho.

Omar fez sem dúvida mal em acompanhar o seu reparo de um gesto desdenhoso dirigido aos seus adversários. Estendem-se mãos, puxam-lhe pelas roupas, que se começam a rasgar. Ele cambaleia. As suas costas embatem num joelho, depois na lisura de uma laje. Esmagado sob a turba, não se digna a debater-se, resigna-se a permitir que lhe retalhem o vestuário e que lhe deixem o corpo em frangalhos, entrega-se ao mole torpor da vítima imolada, nada sente, nada ouve, está fechado em si mesmo, muralha até ao céu e portões trancados.
E contempla como intrusos os dez homens armados que vêm interromper o sacrifício. Eles arvoram, nos seus barretes de feltro, a insígnia verde-clara dos ahdath, a milícia urbana de Samarcanda. Ao vê-los, os agressores afastaram-se de Khayyam; mas justificar a sua conduta, desataram a berrar, tomando a multidão como testemunha; alquimista! Alquimista! Aos olhos das autoridades, ser filósofo não é um crime; praticar a alquimia á passível de morte. Alquimista! Este forasteiro é um alquimista! Mas o chefe de patrulha não tenciona argumentar. Se este homem for de facto um alquimista, decide ele, é ao grande juiz Abu Taher que o devemos conduzir». In Amir Masalouf, Samarcanda, 1988, tradução de Paula Caetano, Editorial Presença, Marcador Editora, 2015, ISBN 978-989-754-102-5.

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