sábado, 16 de abril de 2016

O Segredo da Bastarda. Uma história de amor, traição e intriga. Cristiana Norton. «As criadas trabalhavam aos pares, desdobrando panos brancos para cobrirem os móveis, os quadros e os espelhos. Os lustres faziam parte do trabalho dos homens…»

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A Madrinha
«(…) Rodrigo dissimulava melhor, mas deixou de sorrir durante meses. O desgosto e talvez a inexperiência fizeram com que não soubesse administrar os bens que a mulher herdara. Não que delapidasse em futilidades os dobrões guardados em contadores com esconderijos secretos, imaginados para enganar ladrões, mas não conseguia equilibrar as parcelas do Deve e do Haver no seu caderno diário. Sentiu vontade de fechar a Casa do Arco e nunca mais lá voltar e tentou junto do pai um empenho para alguma boa situação onde pudesse ganhar o suficiente para sustentar a família. A sua mulher, como era de esperar, não lhe pediu contas; e ainda bem, porque ele não podia explicar como lhe tinham fugido das mãos bens e dinheiro: por mais voltas que desse aos números, o resultado ia dar sempre ao mesmo. Penhorou as pratas para pagar a viagem e a estada em Lisboa e disse ao jantar que iriam sair de Guimarães. Maria José acatou a decisão, sem pensar sequer em contrariar a vontade do marido, e deu ordens precisas a uma dezena de criadas para prepararem a mudança, com um vigor que a animou de repente, alimentado pela pueril ideia de que podia deixar a dor da perda do filho trancada no baú do quarto, juntamente com as roupas que ele usara.
As criadas trabalhavam aos pares, desdobrando panos brancos para cobrirem os móveis, os quadros e os espelhos. Os lustres faziam parte do trabalho dos homens, pelo medo das alturas próprio das mulheres e a inconveniência de, mesmo as mais velhas, poderem mostrar parte do tornozelo. Também os tapetes e as tapeçarias, depois de sobre eles serem colocadas bolsinhas com cânfora, eram enrolados e carregados pelos criados até à arrecadação. Quando a carruagem que os levaria até Viana do Castelo desceu as ruas de Guimarães, nem olharam para trás. Não quiseram ver a casa onde lhes tinha morrido, ainda menino, o filho António, nem pensar nas dívidas que deixavam, juntando num só canto do mundo tudo o que era má recordação, motivo de desassossego e sofrimento. Encontraram Lisboa em obras, o que lhes dificultou a descida do barco, porque para substituir os canos danificados da cidade foi preciso esventrar o pavimento até ao Palácio da Inquisição (maldita). Os pequenos Meneses viram as crianças da rua aproveitarem o caos para subirem ao alto dos montes de entulho, que com seis palmos de altura pareciam formigueiros gigantes.
Rodrigo adivinhou no olhar dos filhos uma pontinha de inveja por não poderem fazer o mesmo e disse-lhes que era perigoso para essas crianças correrem assim, porque podiam ser atropeladas por uma besta de carga; e, para lhes desviar a atenção, prometeu-lhes que fariam uma visita à cidade, onde descobririam as coisas mais surpreendentes. Aproveitou ele também para conhecer o novo Passeio Público, que ficava entre o Palácio da Inquisição e a Praça da Alegria. Comentou mais tarde com um amigo que a escolha do lugar não tinha sido feliz, ainda que não houvesse provavelmente outro melhor, porque, dependendo da direcção em que soprava o vento, podia chegar até ao Passeio o cheiro a queimado de algum auto de fé e, do outro lado, a vista podia transformar-se num horror, pois dali era possível ver o corpo de um justiçado a baloiçar na trave do cadafalso. De qualquer maneira, sempre era preferível do que passear os filhos pelo Cemitério dos Ingleses que, até então, era o único parque aberto aos lisboetas.

A Bastarda
Eugénia Maria aproximou-se da filha fazendo o menor ruído possível. Já estás acordada, Isabel Maria? Sim, mãe. Não consigo dormir mais. O repouso é muito importante para o tratamento. Passo os dias deitada neste cadeirão, não acha que descanso o suficiente? Pois é. Mas vai valer a pena o sacrifício, estes meses na Madeira vão curar-te. Se pudesse ter essas suas certezas... Não desanimes, minha filha. Tem razão, continue a contar-me a vida da avó Eugénia, é como se estivesse a ler-me um romance. Assim gosto mais. A minha mãe, provavelmente por ser na altura muito nova, recordava mais a confusão do que a beleza de Lisboa. Tinham desembarcado numa cidade em obras, a recompor-se lentamente do tremor de terra e dos incêndios, onde ainda havia muitos esqueletos de casas e palácios, atafulhados de escombros, e as pedras das ruas estavam levantadas para construírem uns esgotos gigantescos. O meu tio Gregório ficou tão perplexo com eles que o pai os levou a todos, alguns dias mais tarde, a visitar os canos, por onde andaram como se estivessem num túnel, tal era a altura. Assim, foram conhecendo com ele um pouco da cidade e chegaram a ir até Sintra, numa excursão que durou desde a madrugada até bem entrada a noite. A mãe não os acompanhou, saía pouco de casa por causa dos enjoos e tinha já de dissimular com vestidos largos o seu estado à frente de estranhos que a etiqueta da corte obrigava a ver». In Cristina Norton, O Segredo da Bastarda, 2002, Oficina do Livro, 2012, ISBN 978-989-23-1047-3.

Cortesia de OLivro/JDACT