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A
Madrinha
«(…) Rodrigo dissimulava melhor,
mas deixou de sorrir durante meses. O desgosto e talvez a inexperiência fizeram
com que não soubesse administrar os bens que a mulher herdara. Não que delapidasse
em futilidades os dobrões guardados em contadores com esconderijos secretos, imaginados
para enganar ladrões, mas não conseguia equilibrar as parcelas do Deve e do
Haver no seu caderno diário. Sentiu vontade de fechar a Casa do Arco e nunca
mais lá voltar e tentou junto do pai um empenho para alguma boa situação onde
pudesse ganhar o suficiente para sustentar a família. A sua mulher, como era de
esperar, não lhe pediu contas; e ainda bem, porque ele não podia explicar como
lhe tinham fugido das mãos bens e dinheiro: por mais voltas que desse aos
números, o resultado ia dar sempre ao mesmo. Penhorou as pratas para pagar a
viagem e a estada em Lisboa e disse ao jantar que iriam sair de Guimarães. Maria
José acatou a decisão, sem pensar sequer em contrariar a vontade do marido, e
deu ordens precisas a uma dezena de criadas para prepararem a mudança, com um
vigor que a animou de repente, alimentado pela pueril ideia de que podia deixar
a dor da perda do filho trancada no baú do quarto, juntamente com as roupas que
ele usara.
As criadas trabalhavam aos pares,
desdobrando panos brancos para cobrirem os móveis, os quadros e os espelhos. Os
lustres faziam parte do trabalho dos homens, pelo medo das alturas próprio das
mulheres e a inconveniência de, mesmo as mais velhas, poderem mostrar parte do tornozelo.
Também os tapetes e as tapeçarias, depois de sobre eles serem colocadas
bolsinhas com cânfora, eram enrolados e carregados pelos criados até à
arrecadação. Quando a carruagem que os levaria até Viana do Castelo desceu as
ruas de Guimarães, nem olharam para trás. Não quiseram ver a casa onde lhes
tinha morrido, ainda menino, o filho António, nem pensar nas dívidas que
deixavam, juntando num só canto do mundo tudo o que era má recordação, motivo
de desassossego e sofrimento. Encontraram Lisboa em obras, o que lhes
dificultou a descida do barco, porque para substituir os canos danificados da
cidade foi preciso esventrar o pavimento até ao Palácio da Inquisição (maldita). Os pequenos
Meneses viram as crianças da rua aproveitarem o caos para subirem ao alto dos
montes de entulho, que com seis palmos de altura pareciam formigueiros
gigantes.
Rodrigo adivinhou no olhar dos
filhos uma pontinha de inveja por não poderem fazer o mesmo e disse-lhes que
era perigoso para essas crianças correrem assim, porque podiam ser atropeladas por
uma besta de carga; e, para lhes desviar a atenção, prometeu-lhes que fariam
uma visita à cidade, onde descobririam as coisas mais surpreendentes. Aproveitou
ele também para conhecer o novo Passeio Público, que ficava entre o Palácio da
Inquisição e a Praça da Alegria. Comentou mais tarde com um amigo que a escolha
do lugar não tinha sido feliz, ainda que não houvesse provavelmente outro
melhor, porque, dependendo da direcção em que soprava o vento, podia chegar até
ao Passeio o cheiro a queimado de algum auto de fé e, do outro lado, a vista
podia transformar-se num horror, pois dali era possível ver o corpo de um
justiçado a baloiçar na trave do cadafalso. De qualquer maneira, sempre era preferível
do que passear os filhos pelo Cemitério dos Ingleses que, até então, era o
único parque aberto aos lisboetas.
A
Bastarda
Eugénia Maria aproximou-se da filha
fazendo o menor ruído possível. Já estás acordada, Isabel Maria? Sim, mãe. Não
consigo dormir mais. O repouso é muito importante para o tratamento. Passo os
dias deitada neste cadeirão, não acha que descanso o suficiente? Pois é. Mas
vai valer a pena o sacrifício, estes meses na Madeira vão curar-te. Se pudesse
ter essas suas certezas... Não desanimes, minha filha. Tem razão, continue a
contar-me a vida da avó Eugénia, é como se estivesse a ler-me um romance. Assim
gosto mais. A minha mãe, provavelmente por ser na altura muito nova, recordava mais
a confusão do que a beleza de Lisboa. Tinham desembarcado numa cidade em obras,
a recompor-se lentamente do tremor de terra e dos incêndios, onde ainda havia
muitos esqueletos de casas e palácios, atafulhados de escombros, e as pedras
das ruas estavam levantadas para construírem uns esgotos gigantescos. O meu tio
Gregório ficou tão perplexo com eles que o pai os levou a todos, alguns dias
mais tarde, a visitar os canos, por onde andaram como se estivessem num túnel,
tal era a altura. Assim, foram conhecendo com ele um pouco da cidade e chegaram
a ir até Sintra, numa excursão que durou desde a madrugada até bem entrada a
noite. A mãe não os acompanhou, saía pouco de casa por causa dos enjoos e tinha
já de dissimular com vestidos largos o seu estado à frente de estranhos que a
etiqueta da corte obrigava a ver». In
Cristina Norton, O Segredo da Bastarda, 2002, Oficina do Livro, 2012, ISBN
978-989-23-1047-3.
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