«(…) A confirmação ideal dos limites
temporais (12 de Janeiro / 22 de Fevereiro de 1318) é a carta apostólica, até
hoje inédita, de João XXII, datada de 14 de Março 1318, em que o papa concede ao
rei Dinis I a possibilidade de outorgar a total remissão dos pecados in
articulo mortis, precedida de uma prévia, sincera e contrita confissão,
enviada em resposta a uma súplica do soberano, remontando evidentemente a algum
tempo antes de jornada ser empreendida, e que poderá ser lida na perspectiva do
percurso de purificação ou de preparação ao caminho penitencial ou, mais simplesmente,
de reflexão pessoal protagonizada pelo monarca.
O ano da pacificação. 1318
Desde logo, 1318 apresenta-se como
um ano chave na vida de Dinis I, a nível público e privado, pois, nos meses que
seguiram, irá tomar decisões delicadas, cheias de implicações futuras para si
próprio, para a sua família e para o reino de Portugal. O ano de 1317 tinha
começado sob os melhores auspícios com o nascimento do neto a que tinha sido
atribuído o nome do rei, o infante Dinis (12 de Fevereiro de 1317, terceiro
filho do casal formado por Afonso e dona Beatriz, nasceu a 12 de Fevereiro de
1317, S. Eulália), e não a 12 de Janeiro, como a Monarquia Lusitana refere,
transcrevendo erroneamente a notícia extraída do Livro da Noa), mas logo
foi abalado pelas inquietações, suspeitas e desavenças surgidas na família real,
primeiros sinais da guerra civil que, poucos anos depois, entre 1319 e 1324,
terá posto à prova a estabilidade do reino. A gravidade da situação foi tal que
exigiu mesmo a intervenção do pontífice João XXII, que se expressou sem demora
a favor do rei e contra todos os que se opunham e obstavam ao seu governo,
ameaçando-os com pena de excomunhão.
Um tal estado de tensão teve que se
prolongar até aos inícios de 1318, pois remontam ao mês de Março três cartas
apostólicas em que, com tons ligeiramente diversos, João XXII se dirige ao rei,
à rainha e ao herdeiro do trono (estes últimos dois mancomunados no
ressentimento contra o soberano), exortando-os à reconciliação em nome da
concórdia familiar e da paz do reino de Portugal. A exortação do papa não foi
vã porque, de facto, em 1318 não se registam outros confrontos directos entre
pai e filho, nem entre marido e mulher, mas, pelo contrário, assistimos a uma substancial
recomposição do conflito: será necessário esperar pelo ano de 1319 para ver novamente
e mais dramaticamente contraporem-se os contendentes. Numa leitura
retrospectiva dos acontecimentos, poderia afirmar-se que 1318 se apresenta como
um ano de trégua, um ano suspenso entre as primeiras e mais concretas manifestações
do conflito (1317) e o violento e definitivo rebentar da guerra civil [(1319-1324),
os primeiros sinais da desavença entre Dinis I e o herdeiro do trono tiveram
lugar alguns anos antes, entre 1312 e 1313, por ocasião da disputa da herança
de João Afonso, conde de Barcelos, que, no princípio, tinha visto contrapor-se o
conde Martim Gil, mordomo mor do príncipe herdeiro, e Afonso Sanches,
filho natural do rei Dinis. Este último, com o apoio do pai, saiu vencedor da contenda.
Também a herança de Martim Gil, falecido no fim de 1312, transitou para Afonso
Sanches que, no ano seguinte, foi nomeado mordomo mor do rei]. Uma série
de iniciativas empreendidas por Dinis I ao longo de 1318, nos meses seguintes à
peregrinação a Compostela, parecem ir na direcção de uma pacificação familiar e
de uma diminuição das tensões, que podem ser atribuíveis mesmo à experiência espiritual
vivida em primeira pessoa pelo soberano. A Monarquia Lusitana conta que,
após a viagem à Galiza, o ano passou tranquilo e sem problemas. A partir dos
finais do mês de Abril, o rei mudou-se para Torres Vedras, onde ficou até ao
início de Julho, segundo os itinerários. Foi provavelmente durante esta longa
estada que Dinis I, numa área rural pertencente ao concelho de Torres Vedras,
junto à foz do rio Alcabrichel, ordenou a realização de uma obra pública, um
porto, recordado nas fontes como o Porto de S. Dinis, o actual Porto
Novo. Além disso, determinou ainda que quem quisesse podia estabelecer-se e
construir ali a sua casa, a fim de povoar e tornar viva uma zona até
àquele momento desabitada. Na ocasião, decidiu também que, naquela mesma área,
se levantasse uma igreja intitulando-a da invocação do seu santo protector, São
Dinis, ao qual, por devoção, em 1295, já tinha dedicado a construção de um
mosteiro cisterciense, confiado ao ramo feminino da ordem, em Odivelas, nos
arredores de Lisboa». In Giulia Rossi Vairo, Pro Salute Animae. A peregrinação do rei
Dinis I a Compostela. Antecedentes e consequências, Grupo Informal de
História Medieval CITCEM, Universidade do Porto, Faculdade de Letras,
Incipit. Workshop de estudos medievais
da U. do Porto, 2009-2010. GIHM. Coordenação de Flávio Miranda e Joana
Sequeira, CITCEM, Porto 2012, IHA,
Universidade Nova de Lisboa, ISBN 978-972-8932-94-7.
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