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Ano
da Era do Senhor de 824. A origem de tudo
«(…)
O escrivão dirigiu-se imediatamente aos soldados e ordenou-lhes que arrancassem
a vegetação que tinha engolido aquele monumento. A espera foi tensa e os homens
passaram um bom bocado a arrancar ramos, silvas e outras ervas daninhas e tiveram
até de cortar talos quase tão grossos como troncos de árvores. Martín olhava para
o bispo Teodomiro pelo canto do olho porque o notava inquieto incomodado, o que
era muito pouco comum num homem cuja serenidade muito poucos assuntos
alteravam. Perguntava a si mesmo o que lhe estaria a passar pela cabeça. Talvez
os efeitos do jejum o tenham afectado mais do que o habitual. Já estavam há mais
de três dias naquele 1ocal húmido e inóspito, dormindo no chão, à espera de um milagre
que nunca mais se materializava. Talvez fosse o esgotamento, de que ele também começava
a padecer, o que estava a levar o bispo a perder a sua tranquilidade habitual. Sentiu
pena dele. Considerava-o um bom homem, um homem justo e cauteloso nas suas decisões
que lutava contra ventos e tempestades para acabar com o desânimo e, portanto, o
abandono em que se encontrava a sede episcopal iriense, que regia, bem como com
o desânimo dos seus fiéis, desamparados e apegados às habituais práticas druídicas
e pagãs.
Quando,
finalmente, conseguiram libertar a frente do monumento, Teodomiro inspeccionou o
que lhe parecia ser uma entrada e ordenou que tentassem abri-la. Os soldados
esforçaram-se por mover a pedra que impedia o acesso ao interior do túmulo, mas
a sua vontade de pouco lhes valeu, porque o pedregulho parecia impossível de
mover. Depois de várias tentativas, conseguiram usar um tronco como alavanca e,
muito lentamente, foram deslocando a enorme pedra que lhes impedia o acesso. Quando
o vão se tornou suficientemente amplo para permitir a passagem de um homem, o bispo
ordenou-lhes que se afastassem. Pegou numa das tochas e virou-se para Paio,
que, arrebatado pela emoção, tinha os olhos a brilhar. Vamos lá ver o que há aqui
dentro. Um momento, Eminência, pediu Martín. Permiti que eu entre primeiro, pois
não sabemos o que pode estar aí dentro e podeis ferir-vos. Teodomiro esboçou um
sorriso de gratidão para com o seu escrivão. Sentia um grande afecto por aquele
monge que se mostrava sempre tão preocupado com o seu bem-estar. Fez-lhe um gesto
e deixou-o passar primeiro.
Martín
introduziu a mão com a tocha no buraco estreito e passou ao interior, iluminando
o espaço em seu redor. Encontrava-se num espaço estreito e de tecto baixo, com uma
espécie de altar de pedra no centro. Aproximou-se dele e inspeccionou-o. O que vês,
Martín? Entrai, Eminência. Parece que não há perigo. Martín viu a mão do bispo
trazendo a luz da tocha. Quando este acabou de entrar, olharam-se ambos por instantes,
percorrendo em seguida aquele espaço diminuto com o olhar. Logo a seguir a Teodomiro,
surgiu o vulto miúdo do eremita. Martín fixou o olhar naquele homem. Nunca se tinha
fiado nas suas palavras, porém ele revelara-se tão insistente ao longo de tantos
anos que considerara conveniente a visita àquele sítio do monte de Libredón
como única forma de dar credibilidade às suas visões e alucinações de velho louco
e solitário. No entanto, quando o eremita entrou naquele lugar, Martín vislumbrou-lhe
um brilho especial nos olhos e a sua expressão revelava um regozijo impossível de
ocultar. Era um sentimento comedido, mas evidente. Santo Deus!, exclamou Paio. Que
o Senhor seja louvado! Está enterrado aqui!
Não me
vais dizer, Paio, começou Teodomiro, olhando para ele, que conheces a identidade
daquele que dorme aqui o seu sono eterno, disse, aproximando-se do altar, sob o
qual parecia existir uma sepultura. Paio nada respondeu. Entretanto, Martín examinava,
de cócoras, o que havia debaixo do altar de pedra aproximando a chama da pequena
tocha que trazia na mão. É possível que esteja aqui alguém enterrado, mas não
vejo nenhuma inscrição gravada na pedra. Quando se preparava para se levantar, viu
algo que lhe despertou a atenção. Era uma marca lapidar gravada na linha do ângulo
que formava a pedra do altar. Ouviu Paio sussurrar algo que não conseguiu
perceber, a Teodomiro. Observou o sinal demoradamente e, quando ergueu os olhos,
o seu olhar cruzou-se com o de Paio. O eremita dirigiu-se ao bispo sem desviar os
olhos do monge escrivão. Eminência, como já lhe disse, um anjo revelou-me que,
há séculos, o corpo do apóstolo S. Tiago foi trasladado para esta terra.
Martín
levantou-se. Continuava inquieto e receoso com a atitude daquele homem, que se fazia
passar por iluminado mas que, de repente, passou a suscitar a sua desconfiança.
Nem sequer sabemos se isto é realmente um túmulo e já queres dar nome ao cadáver!,
censurou o bispo. Eminência, replicou Paio, com humildade, não sou eu quem diz,
mas Deus quem o põe diante de vossos olhos. Não achas que é demasiada presunção
imaginar tal coisa, Paio?, indagou Teodomiro, manifestando o incómodo evidente que
lhe causaram as palavras do eremita. Além disso, o Apóstolo S. Tiago morreu na
Terra Santa e aí foi enterrado. Não há nada que indique que o seu corpo tenha
sido enterrado nestas terras. Isto é a finis
terrae, portanto estamos nos confins do mundo, esquecidos por todos. Como
poderia estar aqui o corpo do apóstolo sem que ninguém tivesse reparado nisso? É
uma noção insustentável... Eminência, insistiu Paio, há fontes que indicam que S.
Tiago Maior pregou nesta zona. Está incluído no Breviário dos Apóstolos um
manuscrito anónimo com mais de dois séculos de existência». In
Paloma Sanchez-Garnica, A Alma das Pedras, tradução de Miguel Coutinho, Saída
de Emergência, 2010, ISBN 978-989-637-288-0.
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