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O nosso jardim era agitado: rosas para a sacristia da igreja, flores
para o consultório do médico, para a secretária da escola, para os funerais que
aconteciam de vez em nunca, mas que quando vinham mais pareciam uma enxurrada, acumulados
de sete em setecentos, como diziam os mais velhos. Naquela quantidade de
pessoas, como não havia maior natalidade, a mortandade também não mudava, e o
que era visto pelos velhos com medo e exagero dos zeros era, na verdade, o
ciclo normal da vida…, e da morte. Os altares privativos das casas incrustadas
nas ruelas também ganhavam flores. O nosso
jardim dava para todos, inclusive para os mais de vinte trieiros de lava-pés
que desmantelávamos todos os meses. A sua área ocupava dois alqueires, mais ou
menos oito quarteirões, o que, para nós, equivalia a uns doze, aumentando a
cidade e tornando-a mais charmosa. Naquela época, eu achava que era chato aquele trabalho duro, dar de comer
às plantas. Com um saco de adubo nas costas e sempre suja de terra, folhas e
tocos, arranhada pelos severos espinhos. Conforme fui crescendo, passei a olhar
para o significado de cada rosa, para o serviço que elas prestam, o alento que
trazem, os romances que refazem e o encantamento que produzem. A beleza das
espécies. Não se pode olhar uma flor sem o coração, geralmente é ele quem as
vê. Se tivesse compreendido isso antes, não me importaria muito de ter colhido
todas elas, com os seus caules troncudos, e deceptado as suas pétalas doentes. Ao
entardecer, a tia Margarida, irmã mais velha de Florinda, sempre nos esperava
do lado de fora da nossa casa, sentada na sua cadeira de bunda amaciada pelo
tempo, com todo o formato dela, rindo da caça às feras, chacoalhando a voz dos
pés à cabeça, e sempre repetindo: é no que dá a falta do que fazer dia sim, dia
não? Amanhã entrego uma enxada para cada uma, para carpirem o quintal do Tenório,
que está cheio de ervas daninhas e carrapichos. Isso vocês não querem?
Já a
tia Florinda, sempre a replicar, dizia que ao ver-nos fazendo aquilo a
divertia, que o nosso brinquedo era o dela. Uma vida entediada e parada,
gangorrando na emoção de outras. Margarida havia cumprido os seus dezoito anos,
estava na idade do primeiro e do último namoro. Os costumes da cidade grande,
modernos e mais soltos, afrouxam os compromissos e nem sempre chegam a lugares
como o nosso. Muitas cidades ainda moram nas décadas de quando surgiram, nas
suas formações arrumadas, onde podem prender as anarquias dos malandros e
controlar as assanhadas. Imóveis, se arrastam pelos anos sem se desenvolver,
continuando nas suas pequenices e intrigas, adorando o facto de serem ilhas, cuidando
da aparência de todos. Preparando-se para o casamento, que já se emoldurava no
desejo, a minha tia também cuidava da aparência. Um moço promissor da cidade,
ela dizia, contudo o que uma mulher pode querer de um homem. Enumerava as suas
qualidades, exaltando-se. Eram elas a beleza, para acordar e dormir com bom
humor; a simpatia e o carinho, para sentir saudade; a aparente fidelidade,
para perdoar a primeira traição e acreditar que será difícil uma segunda; a
inteligência, para, pelo menos, ele esconder as outras depois daquela primeira
traição; uma boa conversa, para se relevar também as outras coisinhas chatas,
só sabidas com a convivência; a boa voz, que é beleza mais vista e atractiva
para a mulher, para haver sedução ao telefone, ao pé do ouvido, como os
locutores de rádio; e, finalmente, a vontade de trabalhar
com um ofício que traga admiração, em muito a responsável pela continuidade de
amor na vida de um casal. Isso sim era macho de respeito! Tudo regado a uma
situação de viver em interior, onde as línguas das senhoras trabalham muito e
fazem acontecer, compensando assim o que lhes acontece». In Vanessa da Mata, A Filha das
Flores, 2013, Editora Schwarcz (Summertime, MarciaMoraes), Companhia das
Letras, 2013, ISBN 978-858-086-825-8.
Cortesia
de ESchwarcz/CdasLetras/JDACT