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Dois pequenos orifícios perfuravam o couro da velha poltrona, marca dos tiros
fatais que tinham tirado a vida de Arno Holmstrand. Os tiros foram dados bem no
meio do tronco, com pouco mais de dois centímetros de distância entre si.
Sinais que denunciavam o trabalho de um profissional. Agora, com o corpo
removido, o detective podia retraçar a trajectória das balas a partir dos dois buracos
deixados no estofamento da poltrona. O assassino tinha parado na entrada do
gabinete; ele não tinha mais que 1,70m de altura. A vítima estava sentada, de
cara para o seu agressor. O detective Al Johnson observava os técnicos que
vasculhavam a cena do crime. Uma fina pinça, manuseada com habilidade pelas
mãos enluvadas de um homem que obviamente já tinha feito aquilo antes,
extraíram uma bala de um dos orifícios da poltrona. Talvez um calibre 38, cogitou
Johnson, embora não possuísse conhecimentos suficientes para fazer tal
afirmação. Aquele era o terreno dos técnicos em balística. Para ele, bastava
saber que se tratava de um revólver, que aquilo era sem dúvida um assassinato,
e que claramente fora perpetrado por um profissional. Coisas que ele já vira
antes.
O
corpo fora levado para a morgue às primeiras horas da manhã. Três ferimentos de
bala no total. O do lado direito viera primeiro, provavelmente quando a vítima
ainda estava fora do gabinete. Johnson perscrutou o rastro de sangue que se
estendia até ao interior da sala. O médico forense suspeitava que o primeiro
ferimento já teria sido fatal, mas a vítima tinha sobrevivido tempo suficiente
para passar pela porta cambaleando, o detective ergueu-se do chão tentando reconstituir
os passos hipotéticos, passar pela porta e chegar até à mesa. Para quê? Havia
um telefone sobre a mesa, mas nenhum sinal de que fora usado e ninguém telefonara
para o número de emergência até à manhã seguinte, quando o contínuo descobrira
o cadáver. Outro perito procurava impressões digitais na moldura da porta e um
terceiro fazia o mesmo,mas na secretária. Dois sujeitos uniformizados tiravam
fotos, o parceiro de Johnson entrevistava os funcionários da noite no corredor,
e pelo menos seis outras pessoas movimentavam-se pela sala. Não foi a primeira
vez que Al se surpreendeu, diante da vibração de vida que pode haver na cena de
um crime. Era um dos estranhos paradoxos do seu trabalho.
Al
chegou mais perto da secretária. Ela era como imaginava a mesa de um velho
professor: um candeeiro verde-escuro, porta-canetas de bronze, papel mata-borrão
desbotado e um computador que parecia já estar ultrapassado desde a época em
que fora fabricado. Uma bandeja de couro continha cartas antigas, cada uma
meticulosamente aberta com abre-cartas de marfim, que repousava sobre elas. Abre-cartas
de marfim, torre de marfim…, o ambiente era um conjunto de símbolos de uma afirmação
cultural. No centro da mesa, havia um grande livro de capa dura repleto de
fotografias. Estava aberto, mais ou menos na página central. O detective aproximou-se
e correu levemente a mão enluvada pela superfície das páginas. Por baixo do
látex cheio de talco, os seus dedos calejados detiveram-se ao tactear numas bordas
inesperadamente rugosas. A encadernação no centro do livro escondia uma irregularidade
no papel, no ponto onde algumas páginas haviam sido evidentemente arrancadas pouco
tempo antes. Um flash chamou a sua
atenção no momento em que um jovem perito da equipe de Homicídios tirou uma
foto do livro, juntamente com a mão de Al.
Al
imaginou a cena. Um homem, atingido por um tiro no peito, caminha com
dificuldade de volta à sua sala para arrancar algumas páginas de um livro.
Aquilo fazia pouco sentido. Mas também, assassinatos quase nunca faziam muito
sentido. Outra foto, desta vez a objectiva apontava para os seus pés. Al olhou
para o cesto do lixo, repleto de papéis enegrecidos. De joelhos, um jovem bem
trajado, que revolvia os restos carbonizados. Belo fato, pensou Al com os seus
botões, encolerizando-se de imediato. Um rapaz das agendas do governo, era só o
que faltava. Não era fã dos grandes filmes comerciais de Hollywood, mas achava
que eles representavam muito bem a perturbação causada toda vez que várias
agências de segurança disputavam um caso. E os detectives das equipes locais
nunca vestiam fatos elegantes. Não sabia de onde o rapaz era, mas
independentemente disso, Al já sentia que a situação seria terrivelmente
frustrante. Os professores de História queimam sempre os seus papéis?,
perguntou o desconhecido sem levantar os olhos do que estava a fazer.
Não faço
ideia rapaz. O tipo do fato titubeou ao escutar a última palavra, visivelmente contrariado
por lhe recordarem a sua juventude. Levantou-se bem devagar, forçando-se a recuperar
a compostura. Não é grande coisa. Só algumas páginas amassadas, queimadas todas
ao mesmo tempo. Al apontou o livro sobre a secretária. Algumas páginas foram
arrancadas dali, disse, indicando as bordas rasgadas do álbum. Foram três, ao
julgar pelo número da página anterior e da posterior. São as que temos aqui, confirmou
o jovemrapaz, indicando as folhas queimadas no interior do cesto dos papéis. Não entendo, disse Al. O velho leva um tiro no
corredor, mas consegue vir cambaleando de volta ao seu gabinete e sentar-se à
secretária. Há um telefone bem à sua frente, porém nem lhe tocou. Não pede
socorro. Com papel e canetas por todo lado, não escreve nada. Em vez disso,
abre um livro com fotos, arranca umas páginas e queimou-as». In AM
Dean, O Bibliotecário, 2012, Clube do Autor, Lisboa, 2014, ISBN
978-989-724-124-6.
Cortesia
de CdoAutor/JDACT