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O
pulsar lento da vida
«(…)
Levava uma vida calma nas suas moradias em companhia dos que a serviam. As
festas dos paços da Ribeira, de Santa Clara, de Almada e mais tarde de
Enxobregas, as merendas nos parques de Santos, Malveira e Sintra, as temporadas
em Almeirim, Santarém, Coimbra, Alcácer do Sal, e por fim as representações que
algumas de suas damas animavam em serões cada vez mais espaçados, davam uma réstia
de luz à corte que mais parecia festejar a morte. Mas não foi nenhuma dessas
noites que lhe trouxe o amor de uma vida toda num breve momento. Foi o raiar da
aurora. Leve de cuidados desses, descobriu a magia de ser cortejada como uma donzela,
os sentidos a dizerem que sim, a idade a dizer que não, a teimosia deles a vencer,
posto o que tornaram a seu belo rosto as cores das rosas dos jardins do paço.
Era o momento da oração, um aroma encantatório aspergia a capela da Ribeira
onde esperava ouvir missa. A flama das velas agitava-se, em incerta ondulação,
e ela estava longe de adivinhar que a poesia se vestia de luz para vir ao seu
encontro. A graciosa compostura natural que todos lhe conheciam temperou-se de
esquivança, em natural defesa logo depois dos acontecimentos, e o semblante
passou a exibir uma ruga vincada na fronte. Mas a ninguém escapava os olhos como
luzeiros, acesos num repente maior. Talvez por causa dessa transparência
evitasse até às damas conversas sobre o assunto, arreceando que alguma lhe adivinhasse
o peito tomado desse estranho e novo contentamento. Sempre que uma mensagem lhe
chegava às mãos, encurtado o percurso habitual entre o mordomo e Sua Alteza a
rainha, ficava alterada de contente. Mas nesse tempo havia esperança, tingida embora
com tons pardacentos de muitos contratos de casamento fracassados, mas ainda
esperança...
Parecia
um período de mudança boa. Nunca, como então, sorria aos comentários em que se
afundavam suas damas, maliciosamente, sobre gente exterior ao paço e uma ou
duas vezes tolerou brejeirices sobre outras personagens reais. Mas foi uma
viragem efémera, sem rento decisivo. Como se da vontade obsessiva de Suas
Altezas intencionais tempestades caíssem sobre a fortuna, o novo rasgão na teia
dos afectos deixou maiores estragos. Ele era poeta, nada mais tinha de seu que
o maior talento do reino para as rimas. Quando os afectos se rompem cerzidura
alguma os conserta. Cedo ou tarde começam a puir-se os buracos antes feitos na
integridade da teia. Assim aconteceu com Sua Senhoria e com ele, logo que a
desventura fez esmorecer a força para lutar e, buscando todas as alíneas das Ordenações,
El Rei e os conselheiros para a Justiça encontraram razões fortes para deportar
o autor do atrevimento. Como ousaria ele olhar tão alto, encarar a luz da irmã
do próprio soberano? Entre as sugestões de um destino para cumprir o degredo
merecido, até a Índia e África foram nomeadas. Nessas paragens se ganhavam
honra, glória, aí se lavaram vergonhas e se corrigiam os maiores desvios.
O
rigor de Sua Alteza aliado ao mau olhado dos inimigos do poeta, infundiam
profundos receios àqueles que queriam bem aos dois amantes. O futuro só podia
ser negro. Entre o fogo da fogueira, já ateado em Goa, e o fogo dos canhões nas
terras de África, qualquer gentil-homem preferia as armas, qualquer criado ou
trabalhador da terra ambicionava, por meio delas, um lugar mais alto que
encorpasse a sua condição. Sua Senhoria sentia que a distância, trazendo um
custo doloroso, havia de mitigar rancores. E depois era impossível evitar o
cumprimento da pena. Se outras ousadias menores de gente de maior posição
mereciam exemplar castigo, o que havia de esperar um homem sem nome, sem fortuna,
por se atrever a olhar, a cantar em verso a irmã de EI Rei João III? Muitas
razões se uniam para tanto o odiarem. As suas escrituras já passavam de mão em
mão, despertavam invejas muito antes de virem à luz do dia, envoltas no
tratamento do prelo. Onde chegava logo era seguido pelos olhares, comentado o
seu talento, desafiado até por damas de muito alta condição a glosar um mote, a
comentar um dito acintoso... Estava avezado aos desafios e não raras vezes por
eles a sofrer penas no Tronco, onde os homens comuns mais ousados iam sofrer os
tratos da polé. Mas a profunda solidão no forte do Ribatejo, o Oriente?... Não
queria pagar tão alto preço, mas bem sentia o cerco a fechar-se à sua volta, os
inimigos a reclamarem castigos maiores por menores atrevimentos...» In
Maria Helena Ventura, A Musa de Camões, Saída de Emergência, 2006, ISBN
978-972-883-940-6.
Cortesia
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