domingo, 15 de maio de 2016

As Extraordinárias Aventuras da Justiça Portuguesa. Sofia Pinto Coelho. «Os meus colegas consideravam que tinha faltado aos meus deveres de sacerdócio, por ter andado a pisar as alcatifas do poder, por andar nos ‘tachos’»

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O juiz senhorio
«(…) Alguns atropelos legais que num simples cidadão não passam de espertezas saloias, no caso dos juízes têm mais repercussão, pelo menos na imprensa. Veja-se o caso do magistrado, por sinal do Ministério Público, que colocou um anúncio no jornal, pretendendo vender um bilhete para o concerto da Madonna. Os ingressos, nessa altura, estavam esgotadíssimos e só restava o mercado negro. O bilhete tinha-lhe custado 60 euros e ele agora pedia 450 euros. Apareceu um interessado e marcaram um encontro. Porém, em vez de um fã de Madonna, foi um inspector da ASAE que surgiu no encontro. O procurador foi detido e acusado pelo crime de especulação. Noutro caso, o magistrado, dono de um prédio no Porto onde aliás morava, andava todo contente com os trocos que recebia a mais. Alugava quartos, sobretudo a estudantes. A determinada altura, incompatibilizou-se com uma das inquilinas e, de um dia para o outro, expulsou-a. A rapariga era empregada doméstica, mas deu luta. Recorreu ao tribunal, reclamando a restituição da posse do quarto e conseguiu ganhar o processo. Foi nesta altura que a história saltou para a imprensa. A notícia acrescentava que alguém escrevera casa de put…, em letras garrafais, numa das paredes do prédio. O juiz processou o jornal, por difamação. Acabou por ser pior a emenda que o soneto. Apurou-se que o juiz alugava onze quartos e nunca passara recibos.

O juiz pensionista
Se olharmos para as estatísticas, verificaremos que a esmagadora maioria dos juízes é óptima. Para ser mais precisa, nas classificações, os resultados costumam ser assim: 96% obtêm .Bom, .Bom com Distinção, ou Muito Bom. Sobram 4% Suficientes e um mísero 0,1% (ou seja, apenas 1 juiz), com Medíocre. Estas estatísticas dão que pensar, mas, enfim, nas universidades e nos organismos públicos também se empolam os resultados. O mais bizarro, no caso dos magistrados, é o facto de apenas se avaliar quem trabalha nos tribunais de primeira instância. A partir do momento em que ascendem ao Tribunal da Relação, e depois ao Supremo Tribunal da Justiça, os juízes nunca mais são sujeitos a qualquer tipo de escrutínio, por mais que se verifiquem sinais de demência, alcoolismo ou psicopatias. Por outro lado, os critérios de progressão na carreira também são peculiares. É possível subir-se por mera antiguidade, mesmo estando arredado dos tribunais. Foi o que sucedeu a um juiz que há anos andava a cirandar pela política. Primeiro foi chefe de gabinete de um ministro e, depois, secretário-geral do ministério. Era vivaço, inteligente e deu-se bem nos corredores do poder. Dotes que o levaram, mais tarde, a secretário de Estado adjunto da Administração Interna. Ia seguindo a vida dos tribunais, mas de longe, como qualquer outra pessoa.
Alguns dos seus colegas magistrados não viam com bons olhos uma ausência tão prolongada. Com os tribunais sempre afogados em processos, duas mãos a mais para trabalhar davam jeito. É então que sai o ofício do Conselho Superior da Magistratura, obrigando-o a apresentar-se no Tribunal da Relação. Destacaram-no para a secção cível. Ele até ficou surpreendido com a promoção a juiz desembargador pois, nessa altura, trabalhava no Ministério dos Negócios Estrangeiros, onde se tornara um expert no Sistema Schengen. Ser forçado a regressar à Justiça, assim de supetão, não ia ser pêra doce. Com tanta comissão de serviço na Administração Pública, há anos e anos que não lidava com casos judiciais. E agora, como juiz desembargador, ainda por cima iria ter de avaliar o trabalho dos outros. Ninguém o recebeu de braços abertos. Os meus colegas consideravam que tinha faltado aos meus deveres de sacerdócio, por ter andado a pisar as alcatifas do poder, por andar nos tachos. E manifestavam-no de maneiras subtis e psicológicas que me afectaram profundamente.
O juiz meditou e decidiu que o melhor para todos seria pedir a reforma antecipada. Dirigiu-se a uma junta médica e disse que não se adaptava ao isolamento dos tribunais. Uns relatórios psiquiátricos deram uma ajuda e foi assim que, aos cinquenta e quatro anos, se tornou jubilado por incapacidade. Não foi mau negócio. O Estatuto dos Magistrados Judiciais, nestes casos, permite auferir a pensão por inteiro, como se se tivesse cumprido todo o tempo de serviço. O juiz nem teve tempo para gozar calmamente a aposentação prematura. Dois anos depois, convidam-no para director nacional da PSP. Tinha perfil, conhecimentos e, por isso, não resistiu. Os jornais é que não o largaram. Como é que o pensionista n.º 438 881, que recebia uma pensão por incapacidade, se tornara apto para dirigir a polícia? Além disso, acumulava a pensão de reforma com o novo ordenado?! Pela Internet, desataram a correr anedotas. para ser Director da PSP não é preciso ser doido. Mas, pelos vistos, ajuda muito... Nem ele nem o governo aguentaram a pressão. O juiz foi demitido». In Sofia Pinto Coelho, As Extraordinárias Aventuras da Justiça Portuguesa, Histórias insólidas de juízes, advogados, procuradores e de todos nós, A Esfera dos Livros, Lisboa, 2009, ISBN 978-989-626-186-3.

Cortesia de ELivros/JDACT