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O
Pulsar Lento da Vida
«(…)
Sem bem descobrir porquê sofreu meses no escuro de uma cela, onde ninguém podia
ouvir-lhe os queixumes. Amenizou o sofrimento continuando a verter palavras como
lágrimas, os pés acorrentados ao capricho das marés. Só tinha por companhia a
desolação do vento a entrar pela abertura dos postigos donde expedia desabafos,
a ver a quem pertenciam as vozes que poucas vezes se acercavam das paredes do
forte. Sentia-se vergado sob o peso da infelicidade, porém até na ausência, no bico
da pena ligeira, o amor esteve presente. A Senhora Infanta alimentava a esperança
de vê-lo livre e com essa liberdade igualarem-se num só querer, longe do fausto
dos paços. De pouca valia seriam os móveis raros, os tecidos do Oriente, o
delicado ornamento das baixelas na majestosa mansão, se a alma se embrulhasse
na solidão e lhe negassem a luz do afecto. Mas o tempo foi-se arrastando, as coisas
que muito queriam alcançar também não se quedavam imunes às mudanças. Quando a liberdade
surgiu foi passageira, para ele um pássaro na mira da espingarda, forçado a voar
ainda para mais longe. Cumpria-se o destino da Índia, o quase fim de mundo conhecido
pelos portugueses. Como garantiam os que mais batalharam para o tirar da pátria,
só tão longe estariam a salvo a honra e a dignidade ofendidas.
Nem a
ela a mudança bafejou. Emudecida, em extremo refúgio no mundo fechado dos livros,
ia afogando a saudade. Num tempo de soturnas vozes a congeminarem heresias, qualquer
cisco de atrevimento, de ilícito desejo, bastaria para incentivar o castigo. A
Infanta não se manifestava, muito carecendo do nosso apoio para desanuviar
parte das mágoas que era obrigada a calar, com receio de ver o poeta sujeito ao
sofrimento da fogueira. Andávamos por perto, tristes da sorte que lhe vinha, sempre
com o quinhão de consolo que pudesse fazê-la acreditar no que desejava ouvir. O
olhar acusava ainda a natural altivez, mas não raro esboçava a desesperança que
lhe roubava a energia. O trabalho intelectual dava-lhe entrada numa esfera de
menores enganos, porém sabíamos como mal disfarçava a dor da lembrança dele, da
penúria dele, a posição mais submissa que ela mesma era forçada a sustentar, perante
El Rei, apesar da dignidade com que o enfrentava.
Antes
de dormir lá ia eu pé ante pé, até à sua câmara, as aias por ali a
destrançarem-lhe o cabelo, a mudarem-lhe o fato. Oferecia os meus préstimos, já
que mo tinha consentido, às vezes ficava mesmo depois da camareira de confiança
ir embora. Dei com ela muitas noites à janela, com suas vestes brancas tapadas pelo
cabelo quase até à cintura, a olhar o céu pontilhado de luzes, prolongado no
outro céu longínquo, sob o qual o poeta havia de invocar a lira para sentir-se
mais perto da pátria. Sob o manto púrpura da noite estendida sobre os telhados,
media melhor a amplitude do desassossego, a nudez das urdiduras que a mantinham
quase prisioneira no seu amado país. Passava, então, em revista a vida que se perdia
por culpa de outros, por causa de outras vidas colocadas à sua frente. Não era por
bem que a família real, a sua própria família, a queria perto... Os laços de sangue
com os monarcas não lhe faziam menor a orfandade. Nem o afecto que lhe tinham era
tão limpo que os deixasse olvidar a fazenda a que tinha direito. O medo de a perderem
mais ao dote que levaria consigo, era a prioridade do trabalho de espionagem
aturada que até na sua moradia se manifestava, com vigilância cerrada a todos os
seus movimentos. Agora mais enxergava o muito que manobravam para a manter solteira,
v'ulnerável, dependente de razões de estado para decidir o próprio destino,
quando a natureza a tinha coberto de gravidade
e siso..., de mansidão e graça...
Todos
os bens morais e sabedoria lhe acrescentavam a condição de nascimento que lhe
dava direito a uma riqueza invejável. Jeronymo Osório, futuro bispo de Silves, costumava
falar a Sua Alteza da força interior, da inteligência que lhe notava desde criança.
O embaixador castelhano Sancho Córdova vincava-lhe o bom senso, o carácter, a cultura.
Suas damas admiravam-lhe a bondade, o acerto nas falas e na acção. Como não
havia de doer a ironia de não poder traçar, tão dotada Senhoria, um destino a seu
contento? Não era mais que uma peça de xadrez jogada pelo tio e cunhado, ainda na
Alemanha, pelo irmão e pai adoptivo, Por alguns nobres simpatizantes da causa da
rainha, tia e cunhada, também... Não a consolava saber que sempre as razões de estado
se tinham sobreposto às necessidades individuais. Bastava ver os exemplos, na família:
o pai desfizera o casamento do próprio filho, o herdeiro, por entender que era mais
conveniente casar-se ele com a noiva, depois mãe de Sua Senhoria; El Rei, seu irmão,
esquecido do desgosto que o rei Manuel I lhe causara tomando a sua prometida, arranjara
o enlace da própria filha com Filipe de Espanha, antes indicado para a irmã. Grave
era ter nascido no meio de interesses contrários ao seu legítimo direito à felicidade.
Como podia ela livrar-se dessa teia, concretizar o seu desejo de paz familiar, se
nem sua mãe, viúva do Venturoso, conseguira escapar?» In Maria Helena Ventura, A Musa
de Camões, Saída de Emergência, 2006, ISBN 978-972-883-940-6.
Cortesia
de SdeEmergência/JDACT