quarta-feira, 25 de maio de 2016

Camões. A Infanta dona Maria. De Volta de Ceuta. José Maria Rodrigues. «Passei-os eu com animo obstinado. Com que a morte forçada gloriosa faz o vencido já desesperado. Em qual figura ou gesto desusado pôde já fazer medo a morte irosa a quem tem a seus pés, rendido e atado?»

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De Volta de Ceuta
[…]
«E para acabar de lhe azedar a alma, não faltariam os boatos de que a infanta tinha todo o empenho em não protrahir o seu casamento com o principe das Astúrias. Foi talvez por pôr a bocca no mau successo dos amores de Camões com a infanta, que Gonçalo Borges, encarregado dos arreios do paço, foi gravemente ferido pelo poeta, na rua de Santo Antão, em pleno dia, quando toda a Lisboa andava na rua para assistir á procissão do Corpo de Deus, 16 de Junho de 1552, [a narrativa do facto, contida na carta de perdão, auctoriza, a meu ver, a conjectura de que não foi casual a intervenção do poeta na briga travada entre Gonçalo Borges e os dous cavalleiros mascarados; a immediata retirada destes faz suppôr que o poeta tinha contas a ajustar com aquelle, mas não queria ser o provocador]. Como se sabe, o poeta esteve preso até 7 de Março de 1553 e foi solto por lhe ter perdoado a parte offendida e por ir servir aquelle anno na Índia. E antes de findar o mês, talvez no dia 26, lá saía elle da amada terra, em que lhe ficava o magoado coração.
E tanto mais magoado, quanto ás saudades da infanta accresciam também agora as da menina dos olhos verdes, que, sinceramente compadecida da sorte d'aquelle a quem tanto havia amado e esquecendo profundos aggravos, não quis faltar ao amargurado poeta com o seu perdão nem com as sinceras lagrimas da despedida, na manhã do dia de embarque.

«Aquella triste e leda madrugada,
Cheia toda de mágoa e de piedade,
Emquanto houver no mundo saudade,
Quero que seja sempre celebrada.

Ella só, quando amena e marchetada
Saía, dando á terra claridade,
Viu apartar-se de uma outra vontade,
Que nunca poderá ver-se apartada.

Ella só viu as lagrimas em fio,
Que, de uns e de outros olhos derivadas,
Juntando-se, formaram largo rio.

Ella ouviu as palavras maguadas,
Que poderão tornar o fogo frio
E dar descanso ás almas condemnadas».
(Soneto 20).

E já em pleno mar, é ainda esta doce imagem que o poeta evoca, para arrostar os perigos que o esperavam:

«Por cima destas aguas, forte e firme,
Irei aonde os fados o ordenaram,
Pois por cima de quantas derramaram
Aquelles claros olhos, pude vir-me.

Já chegado era o fim de despedir-me;
Já mil impedimentos se acabaram.
Quando rios de amor se atravessaram
A me impedir o passo de partir-me.

Passei-os eu com animo obstinado.
Com que a morte forçada gloriosa
Faz o vencido já desesperado.

Em qual figura ou gesto desusado
Pôde já fazer medo a morte irosa
A quem tem a seus pés, rendido e atado?

Mas, como vamos ver, não era só na menina dos olhos verdes que o poeta ia pensando durante a longa e accidentada viagem para a Índia». In José Maria Rodrigues, Camões e a Infanta D. Maria, Separata do Instituto, Imprensa da Universidade de Coimbra, Coimbra, 1910, há memória do Mal-Aventurado Príncipe Real Luís Philippe (3 1761 06184643.2), PQ 9214 R64 1910 C1 Robarts/.

Cortesia do AHistórico/UCoimbra/JDACT