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E no entanto, como gostava do primo. Às escondidas dos preceptores de ambos os lados
que em vão os vigiavam, cavalgava mais para norte escapando aos cuidados de um
jovem frade templário esfalfado no encalço do herdeiro do condado, como repetia.
Ele e Afonso Raimundes prometiam-se respeito mútuo, amizade eterna, cooperação
nos esforços de combate aos infiéis. E acima de tudo poupança de suas vidas caso
houvesse confrontos exigidos pelos aliados de cada um deles. Sonhos ainda por manchar
com as conveniências do poder, nessa altura, apenas alimentados pela pureza de dois
infantes com pequenas responsabilidades e grandes arrebatamentos. As coisas ficavam
diferentes a partir de S. Mamede, quando a vitória do lado português indiciava a
construção de uma independência. Para Afonso Henriques era preciso anular o vínculo
a Leão e Castela, um elo mantido quase intacto pelo conde de Trava na pessoa dos
descendentes. Dona Teresa não ajudava. Traindo a memória do primeiro esposo prolongava
esse cordão pela ligação com os filhos de Pedro Froilaz, antigo tutor de Raimundes.
E se pouco importavam ao príncipe português promiscuidades dessas fora do sangue,
com sua mãe era diferente. Foi isso que o fez aceitar a liderança das forças dos
barões portucalenses.
Antes
da batalha o coração sangrava, certo de ser uma peça jogada pelos poderes espiritual
e temporal do condado. Imaturo intempestivo, colérico às vezes, sim, um animal sem
sentimentos com vontade de mandar prender a mãe a ferros, jamais. Os que forjaram
essa história não lhe perdoaram ganhar a batalha depois de um momento de
desnorte. Quando o viram abandonar a peleja cuidaram ter a vitória na mão. Só não
contaram que ele voltasse para trás animado pela força de Soeiro Mendes, o Grosso, um dos irmãos do Sousão encontrado no caminho, para
rechaçar as hostes contrárias com a força de um leão, a força a que desde então
apela para investir contra os inimigos. Não queria fazer sofrer a mãe, nem pelo
ressentimento de em criança tão pouco o visitar. Mas como podia cumprir os desejos
que o pai lhe pedira à hora da morte sem deceptar as ambições dessas famílias galegas
que a usavam como instrumento seu? Como ajudá-la a satisfazer a ambição de ser rainha
se logo havia de repartir a glória do poder com o novo companheiro?
Mais
importante, naquela altura e sempre era o chão, a terra firme. E não trair o desejo
de justa autonomia dos homens que a sul do Minho, longe de qualquer poder central,
há séculos se organizavam sozinhos para a defesa. E depois o velho imperador de
Leão e Castela dera ao genro, seu pai, os limites primeiros do condado para que
Raimundo, conde de Amous e primeiro marido de Urraca, não tivesse demasiada
força. Não podia fazer cedências naquela altura, como não pode fazer agora, a seu
primo coroado rei três vezes, se mesmo sem adesão do condado portucalense já se
intitula imperador das Espanhas. É tempo de deixar de lado ecos de tempos distantes
e dar espaço a outras lembranças mais gratas. Olha para trás, na direcção de
Lourenço Viegas. Espero pernoitar à guarda nos mosteiros de que te falei, consegues
albergar esta gente toda nas imediações? Montamos tendas nos domínios coutados,
como costumamos fazer. Não posso deixar de concluir a missão, mas estou morto por
chegar a Coimbra. Já te habituaste à velha casa da alcáçova, não é? Sinto-a
minha desde o primeiro dia. Nem me lembro que era árabe, o velho castelo.
Cavalgam
com destino à Sé de Braga para rezar no túmulo dos pais. A luz calma do luar de
um novo ano aviva a massa rectilínea de castelos dispersos salpicando de luz os
primeiros arbustos projectados nos retalhos de terra ainda ermada. Adivinha ao longe
o costado espesso de um ou outro eremitério contra a lisura do céu entre mantas
de floresta densa, uma ou outra igrejinha alvejando como o pó da pedra
cinzelada nas mãos dos alvenéis. Quando as ferraduras dos cavalos pisam os campos
fofos, revê cenas familiares muito antigas, ainda o rosto indistinto das irmãs
mais velhas, a outra que mal conhece e de que tanto ouvia falar como expressão do
pecado da mãe. Antecipa o momento de ajoelhar na Sé com desfechos diferentes, uma
vaga angústia a trair a postura austera do guerreiro quando chega depressa ao terreiro
circundante da grande massa de pedra. Mal se apeia segreda a Lourenço Viegas
que mantenha os companheiros a considerável distância. E um assunto muito íntimo,
tão íntimo que ainda tem dificuldade em encará-lo. Nem aos mais chegados permite
intromissão. Se precisarem rezar esperem que eu saia. Entraremos depois, vai em
paz.
Enquanto
o Braganção resmunga que não é macho de
rezas, Afonso avança para a porta. Desolação, é o que sente, avaliando o trabalho
necessário para reparar a Sé. A construção ainda não estava concluída quando o terramoto
a derrubava, quatro anos atrás. Apesar do empenhamento de Paio Mendes antes e de
Peculiar agora, as obras têm avançado pouco, exigem largos meios repartidos por
outras necessidades. Pára uns segundos à entrada da nave desejoso de receber inspiração
divina para se aproximar sem profanação do espaço. O lutador que não pensa duas
vezes para cair sobre o inimigo, dá agora lugar ao homem temente da delicadeza do
momento próximo, avistada a figura da dama de mantéu negro sentada lá à frente,
no escabelo, em sussurro com o prelado. Para ela reserva a saudação carinhosa
enquanto o clérigo se afasta para a sacristia, depois das vénias useiras com palavras
de respeito ao futuro rei». In Maria Helena Ventura, Afonso, O
Conquistador, Saída de Emergência, 2007, ISBN 978-972-883-985-7.
Cortesia
de SdeEmergência/JDACT