quinta-feira, 26 de maio de 2016

Afonso. O Conquistador. Maria Helena Ventura. «O lutador que não pensa duas vezes para cair sobre o inimigo, dá agora lugar ao homem temente da delicadeza do momento próximo, avistada a figura da dama de mantéu negro sentada lá à frente…»

jdact

«(…) E no entanto, como gostava do primo. Às escondidas dos preceptores de ambos os lados que em vão os vigiavam, cavalgava mais para norte escapando aos cuidados de um jovem frade templário esfalfado no encalço do herdeiro do condado, como repetia. Ele e Afonso Raimundes prometiam-se respeito mútuo, amizade eterna, cooperação nos esforços de combate aos infiéis. E acima de tudo poupança de suas vidas caso houvesse confrontos exigidos pelos aliados de cada um deles. Sonhos ainda por manchar com as conveniências do poder, nessa altura, apenas alimentados pela pureza de dois infantes com pequenas responsabilidades e grandes arrebatamentos. As coisas ficavam diferentes a partir de S. Mamede, quando a vitória do lado português indiciava a construção de uma independência. Para Afonso Henriques era preciso anular o vínculo a Leão e Castela, um elo mantido quase intacto pelo conde de Trava na pessoa dos descendentes. Dona Teresa não ajudava. Traindo a memória do primeiro esposo prolongava esse cordão pela ligação com os filhos de Pedro Froilaz, antigo tutor de Raimundes. E se pouco importavam ao príncipe português promiscuidades dessas fora do sangue, com sua mãe era diferente. Foi isso que o fez aceitar a liderança das forças dos barões portucalenses.
Antes da batalha o coração sangrava, certo de ser uma peça jogada pelos poderes espiritual e temporal do condado. Imaturo intempestivo, colérico às vezes, sim, um animal sem sentimentos com vontade de mandar prender a mãe a ferros, jamais. Os que forjaram essa história não lhe perdoaram ganhar a batalha depois de um momento de desnorte. Quando o viram abandonar a peleja cuidaram ter a vitória na mão. Só não contaram que ele voltasse para trás animado pela força de Soeiro Mendes, o Grosso, um dos irmãos do Sousão encontrado no caminho, para rechaçar as hostes contrárias com a força de um leão, a força a que desde então apela para investir contra os inimigos. Não queria fazer sofrer a mãe, nem pelo ressentimento de em criança tão pouco o visitar. Mas como podia cumprir os desejos que o pai lhe pedira à hora da morte sem deceptar as ambições dessas famílias galegas que a usavam como instrumento seu? Como ajudá-la a satisfazer a ambição de ser rainha se logo havia de repartir a glória do poder com o novo companheiro?
Mais importante, naquela altura e sempre era o chão, a terra firme. E não trair o desejo de justa autonomia dos homens que a sul do Minho, longe de qualquer poder central, há séculos se organizavam sozinhos para a defesa. E depois o velho imperador de Leão e Castela dera ao genro, seu pai, os limites primeiros do condado para que Raimundo, conde de Amous e primeiro marido de Urraca, não tivesse demasiada força. Não podia fazer cedências naquela altura, como não pode fazer agora, a seu primo coroado rei três vezes, se mesmo sem adesão do condado portucalense já se intitula imperador das Espanhas. É tempo de deixar de lado ecos de tempos distantes e dar espaço a outras lembranças mais gratas. Olha para trás, na direcção de Lourenço Viegas. Espero pernoitar à guarda nos mosteiros de que te falei, consegues albergar esta gente toda nas imediações? Montamos tendas nos domínios coutados, como costumamos fazer. Não posso deixar de concluir a missão, mas estou morto por chegar a Coimbra. Já te habituaste à velha casa da alcáçova, não é? Sinto-a minha desde o primeiro dia. Nem me lembro que era árabe, o velho castelo.
Cavalgam com destino à Sé de Braga para rezar no túmulo dos pais. A luz calma do luar de um novo ano aviva a massa rectilínea de castelos dispersos salpicando de luz os primeiros arbustos projectados nos retalhos de terra ainda ermada. Adivinha ao longe o costado espesso de um ou outro eremitério contra a lisura do céu entre mantas de floresta densa, uma ou outra igrejinha alvejando como o pó da pedra cinzelada nas mãos dos alvenéis. Quando as ferraduras dos cavalos pisam os campos fofos, revê cenas familiares muito antigas, ainda o rosto indistinto das irmãs mais velhas, a outra que mal conhece e de que tanto ouvia falar como expressão do pecado da mãe. Antecipa o momento de ajoelhar na Sé com desfechos diferentes, uma vaga angústia a trair a postura austera do guerreiro quando chega depressa ao terreiro circundante da grande massa de pedra. Mal se apeia segreda a Lourenço Viegas que mantenha os companheiros a considerável distância. E um assunto muito íntimo, tão íntimo que ainda tem dificuldade em encará-lo. Nem aos mais chegados permite intromissão. Se precisarem rezar esperem que eu saia. Entraremos depois, vai em paz.
Enquanto o Braganção resmunga que não é macho de rezas, Afonso avança para a porta. Desolação, é o que sente, avaliando o trabalho necessário para reparar a Sé. A construção ainda não estava concluída quando o terramoto a derrubava, quatro anos atrás. Apesar do empenhamento de Paio Mendes antes e de Peculiar agora, as obras têm avançado pouco, exigem largos meios repartidos por outras necessidades. Pára uns segundos à entrada da nave desejoso de receber inspiração divina para se aproximar sem profanação do espaço. O lutador que não pensa duas vezes para cair sobre o inimigo, dá agora lugar ao homem temente da delicadeza do momento próximo, avistada a figura da dama de mantéu negro sentada lá à frente, no escabelo, em sussurro com o prelado. Para ela reserva a saudação carinhosa enquanto o clérigo se afasta para a sacristia, depois das vénias useiras com palavras de respeito ao futuro rei». In Maria Helena Ventura, Afonso, O Conquistador, Saída de Emergência, 2007, ISBN 978-972-883-985-7.

Cortesia de SdeEmergência/JDACT