segunda-feira, 9 de maio de 2016

Afonso. O Conquistador. Maria Helena Ventura. «… mal Afonso Raimundes se fazia coroar rei em Leão. Tal como a mãe também aproveitava a divisão de famílias galegas influentes, fazia concessões a mosteiros no outro lado das fronteiras políticas e administrativas».

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«Desta vez passou uma longa temporada nas terras à volta de Guimarães que sempre revê com saudade. Fez-se homem nestas matas, nas glebas de centeio e urze onde em breve vai despontar a Primavera. Aprendeu a manejar as armas, a enfrentar os rivais dos primeiros torneios nos amplos espaços em redor do burgo. Aqui viveu ainda as mais puras histórias de amor, longe de olhares indiscretos, com a cumplicidade dos irmãos adoptivos e dos companheiros chegados. Mas nem todas as memórias são pacíficas como a brisa, às vezes voltam como tempestades. Neste lugar ficou impressa a marca mais dolorida da vida, tinha então dezanove anos, o corpo feito do guerreiro de hoje, mas nenhumas certezas sobre o seu papel de líder. Daí a momentos poderia lá passar na subida para Braga, se quisesse, à saída para S. Torcato. S. Mamede de Aldão, o campo onde enfrentou as forças de dona Teresa e Fernão Peres Trava, ainda as fidelidades das gentes do condado e da Galiza se misturavam em sentimentos contraditórios, repartidos pelos adeptos da mãe e da integração do condado, e pelos obreiros da separação que ele mesmo comandava.
Era tão difícil decidir, nessa altura. Hoje toma decisões com a rapidez do ar atravessando as narinas, mas naquele tempo hesitava depois de sacrificar noites seguidas aos problemas sem lograr ver a solução quando acordava. Frei Raimundo tudo pressente. Guarda o breviário equilibrado no cachaço do cavalo e adianta-se para ficar de novo a seu lado. Lembranças antigas, senhor? Bem sabeis como este lugar me traz angústia. Não queria chegar à expulsão de minha mãe dos domínios que ela herdara de meu avô. Afonso VI amava tanto essa filha natural, mais do que às outras, diziam. Mas os acontecimentos precipitaram-se, tomaram rumos inesperados. Às vezes as circunstâncias endurecem as nossas atitudes. Falais exactamente de quê, frei Raimundo? De um tão grande império deixado a Urraca, das suas fragilidades aproveitadas pelas ambições de reinos emergentes, dos inevitáveis confrontos com vossa mãe, até dos vossos com Afonso Raimundes. Com isso considerais-me vítima ou carrasco? Fostes um instrumento, nada mais. Não deveis mortificar-vos, senhor. Farei por não me atormentar, vereis. Folgo em saber.
E com isto o frade atrasa a montada para deixar como há pouco o futuro rei entregue aos seus pensamentos. Dois anos antes de nascer, sua tia Urraca ficava viúva e o avô designava o neto Afonso Raimundes como sucessor. Mas em Toledo onde o leonês viria a falecer, a nobreza e clero preferiam a filha como legítima herdeira. Ao imperador moribundo só lhe restava acatar a decisão das forças maiores do seu império. Ainda assim sugeria um novo casamento de Urraca com o parente de Aragão, Afonso I o Batalhador ou o Aragonês. Solteiro, sem herdeiros e um guerreiro experimentado, poderia ajudá-la a superar os maiores obstáculos da governação. A rainha revelava-se vulnerável a intrigas que não raras vezes fomentava, aos afectos partilhados por vários amantes, às oposições da Galiza e dos outros reinos sob o seu domínio. Cedo aliava o filho menor aos assuntos do império para apelar à unidade entre os seus adeptos e os simpatizantes da vontade do pai. Mas com isso despoletava em Teresa, a irmã ilegítima casada com o conde Henrique, a ambição de ser rainha. Nenhuma outra irmã lhe trazia tantos cuidados como Teresa que não tendo reino algum, em todo o lado lembrava como o próprio filho, Afonso Henriques, era tão neto de Afonso VI como o filho de Urraca.
Para o reforçar Teresa usava as fragilidades da irmã em seu proveito, mais ainda depois do conde Henrique ter morrido. Intrigava a rainha de Leão e Castela com inimigos, até com aliados antigos conseguindo o apoio de famílias galegas como a casa de Trastamara. Primeiro através de uma união mal assumida com Bermudo Peres Trava, afinal mais tarde casado com Urraca Henriques, sua filha mais velha à guarda de Bermudo durante algum tempo, depois por força de outra relação quase incestuosa com Fernão Peres, irmão do antigo companheiro. Conseguia ainda tomar Tui e Ourense, território adstrito ao mosteiro de Celanova, em busca de aliados galegos, enquanto despertava a revolta dos partidários da irmã. Urraca pagava-lhe na mesma moeda. Incendiava os ânimos do sobrinho contra própria mãe. Colocava até à disposição das suas ambições de herdeiro imberbe a catedral de Zamora, o clero da sua confiança. Que se armasse ali cavaleiro. E ele armava, mal completava os dezasseis anos, no dia de Pentecostes, incentivado por uma fatia da nobreza de Portugal sedenta da autonomia. Passava a intitular-se príncipe de Portugal, neto do imperador Afonso VI, mal Afonso Raimundes se fazia coroar rei em Leão. Tal como a mãe também aproveitava a divisão de famílias galegas influentes, fazia concessões a mosteiros no outro lado das fronteiras políticas e administrativas». In Maria Helena Ventura, Afonso, O Conquistador, Saída de Emergência, 2007, ISBN 978-972-883-985-7.

Cortesia de SdeEmergência/JDACT