segunda-feira, 9 de maio de 2016

Roma. Steven Saylor. «O terreno ao longo daquele trecho do rio era, na sua maioria, plano, mas na vizinhança imediata da ilha, a terra do lado do nascer do sol parecia um tecido enrugado, com montes, cadeias de montanhas e vales»


jdact e wikipedia

«Quando eles fizeram uma curva no trilho que corria ao lado do rio, Lara reconheceu a silhueta de uma figueira no alto de um morro próximo. Fazia calor e os dias eram longos. A figueira estava coberta de folhas, mas ainda não dera frutos. Logo depois, Lara localizou outros pontos de referência, um afloramento de calcário à beira do trilho que tinha uma silhueta que lembrava a cara de um homem, um ponto pantanoso à margem do rio onde as aves aquáticas se assustavam com facilidade, uma árvore alta que parecia um homem de braços erguidos. Eles estavam-se aproximando do ponto em que havia uma ilha no rio. Era um bom lugar para armar um acampamento. Naquela noite, eles iriam dormir ali. Lara percorrera aquelo trilho de um lado para o outro muitas vezes na sua curta vida. O seu povo não criara o trilho bem usada, ela sempre estivera ali, tal como o rio, mas os pés cobertos de pele de alces e as rodas de madeira de seus carrinhos de mão mantinham o trilho. O povo de Lara era composto de mercadores de sal, e o seu sustento levava-os a uma viagem contínua.
Na foz do rio, o pequeno grupo de meia dúzia de famílias misturadas apanhava sal das grandes salinas à beira-mar. Eles preparavam e peneiravam o sal e carregavam-no em carrinhos de mão. Quando os carrinhos estavam cheios, a maioria do grupo ficava para trás, abrigando-se no meio das rochas e simples alpendres, enquanto um grupo de mais ou menos 15 dos membros mais dispostos partia pelo trilho que corria ao lado do rio. Com sua preciosa carga de sal, os viajantes atravessavam as terras baixas da costa e seguiam em direcção às montanhas. Mas o povo de Lara nunca chegou ao topo das montanhas; só viajava até aos sopés. Muitos povos viviam nas florestas e nas campinas relvadas dos sopés, reunidos em pequenas aldeias. Em troca de sal, aqueles povos dariam à população de Lara carne-seca, peles de animais, tecido de lã, potes de barro, agulhas e raspadeiras feitas de osso, e pequenos brinquedos de madeira. Feito o escambo, Lara e o seu povo iriam voltar pelo trilho do rio até ao mar. O ciclo iria recomeçar.
Tinha sido sempre assim. Lara não conhecia outra vida. Viajava de um lado para o outro, indo e vindo pela trilha do rio. Não havia um lugar em que ela morasse. Ela gostava do beira-mar, onde sempre havia peixe para comer, e o suave quebrar das ondas a embalava para dormir à noite. Ela gostava menos dos sopés das montanhas, onde a trilha ficava íngreme, as noites podiam ser frias e as vistas de grandes distâncias a deixavam tonta. Ela sentia-se inquieta nas aldeias e muitas vezes ficava tímida no meio de estranhos. Era no próprio trilho que ela se sentia mais em casa. Adorava o cheiro do rio num dia quente e o coaxar dos sapos à noite. Videiras cresciam em meio à luxuriante folhagem ao longo do rio, com frutos deliciosos. Até mesmo no mais quente dos dias, o pôr-do-sol trazia do mar uma brisa fresca, que suspirava e cantava em meio aos bambus e capins altos. De todos os pontos ao longo do trilho, a área da qual eles estavam aproximando-se, com a ilha no rio, era a preferida por Lara.
O terreno ao longo daquele trecho do rio era, na sua maioria, plano, mas na vizinhança imediata da ilha, a terra do lado do nascer do sol parecia um tecido enrugado, com montes, cadeias de montanhas e vales. Com o povo de Lara havia um berço de madeira, próprio para prender a um carrinho, que vinha passando de geração em geração. A ilha tinha o formato daquele berço, mais comprida do que larga e apontada para o lado do rio acima, onde a corrente provocara a erosão das duas margens. A ilha parecia um berço, e o conjunto de montanhas do lado do rio em que o sol nascia parecia um grupo de velhas mulheres envoltas em pesados casacos, reunidas para dar uma olhada na criança que estava no berço, fora assim que o pai de Lara descrevera, certa vez, a disposição do terreno». In Steven Saylor, Roma, 2007, Bertrand Editora, Lisboa, 2008, ISBN 978-972-251-645-7.

Cortesia de BertrandE/JDACT