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No
Oriente
«[…]
De
que serve ás pessoas o lembrar-se
Do
que se passou já (pois tudo passa),
Senão
de entristecer-se e magoar-se ?
Se
em outro corpo um’alma se traspassa,
Não,
como quis Pythagoras, na morte,
Mas,
como quer Amor, na vida escassa;
E se
este Amor no mundo está de sorte.
Que
na virtude só de um lindo objecto
Tem
um corpo sem alma, vivo e forte;
Onde
este objecto falta, que é defecto
Tamanho
para a vida, que já nella
Me
está chamando á pena a dura Alecto;
Porque
me não criara a minha estrella
Selvático
no mundo, e habitante
Na
dura Scyihia e no mais duro della?
Ou
no Cáucaso horrendo, fraco infante,
Criado
ao peito de uma tigre hircana,
Homem
fora formado de diamante;
Porque
a cerviz ferina e inhumana
Não
submettera ao jugo e dura lei
Daquelle
que dá vida quando engana.
Ou,
em pago das aguas que estilei.
As
que passei no mar foram do Lethe,
Para
que me esquecera o que passei.
Porque
o bem que a esperança vã promette,
Ou a
morte o estorva ou a mudança,
Que
é mal que um'alma em lagrimas derrete.
Já,
Senhor, cahirá como a lembrança,
No
mal, do bem passado é triste e dura,
Pois
nasce aonde morre a esperança.
E
com a esperança já morta, mas certo de que o destinatário da elegia avaliará
bem quam triste e dura é para os infelizes a lembrança do bem passado, o poeta
conta-lhe como, durante a longa viagem, se viu alanceado de saudades, que os
perigos tornaram mais vivas, mais pungentes.
Soltava
Eolo a redea e liberdade
Ao
manso Favonio brandamente,
E eu
a tinha já solta á saudade.
Neptuno
tinha posto o seu tridente;
A
proa a branca escuma dividia,
Com
a gente marítima contente.
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Eu,
trazendo lembranças por antolhos,
Trazia
os olhos na agua sossegada
E a
agua sem sossego nos meus olhos.
A
bem-aventurança já passada
Diante
de mi tinha tão presente.
Como
se não mudasse o tempo nada.
E
com o gesto immoto e descontente,
C’um
suspiro profundo e mal ouvido,
Por
não mostrar meu mal a toda a gente,
Dizia:
Oh claras nymphas, se o sentido
Em
puro amor tivestes e inda agora
Da
memoria o não tendes esquecido.
Se
por ventura fordes algum'hora
Adonde
entra o grão Tejo a dar tributo
A
Tethys, que vós tendes por senhora.
Ou
já por ver o verde prado enxuto.
Ou
já por colher ouro rutilante.
Das
tagicas areias rico fruto:
Nellas,
em verso erótico e elegante.
Escrevei
c'uma concha o que em mi vistes;
Póde
ser que algum peito se quebrante.
E,
contando de mi memorias tristes,
Os
pastores do Tejo, que me ouviam,
Ouçam
de vós as maguas que me ouvistes.
Ellas,
que já no gesto me entendiam,
Nos
meneios das ondas me mostravam
Que
em quanto lhes pedia consentiam.
Estas
lembranças, que me acompanhavam
Por
a tranquillidade da bonança,
Nem
na tormenta triste me deixavam,
Porque,
chegando ao Cabo da Esperança,
Começo
da saudade que renova,
Lembrando
a longa e áspera mudança.
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Eis
a noite com nuvens se escurece;
Do
ar subitamente foge o dia,
E
todo o largo oceano se embravece.
E
depois de descrever rapidamente, mas em soberbos versos, a temerosa tempestade
que no Cabo assaltou a nau S. Bento, prosegue Camões:
Amor
alli, mostrando-se possante
E
que por algum medo não fugia,
Mas
quanto mais trabalho, mais constante,
Vendo
a morte presente, em mi dizia:
Se
algum'hora, Senhora, vos lembrasse,
Nada
do que passei me lembraria!
E o
poeta commenta assim este estado de espirito:
Emfim,
nunca houve cousa que mudasse
O
firme amor intrinseco daquelle
Em
quem alguma vez de siso entrasse.
Uma
cousa, Senhor, por certa asselle:
Que
nunca amor se afina nem se apura.
Em
quanto está presente a causa delle.
Em
seguida, o poeta dá noticia da sua chegada á Índia, faz um relatório da
primeira expedição militar em que tomou parte, declara invejável a sorte dos
lavradores e pastores e conclue:
Porém
seja, Senhor, de qualquer arte;
Pois,
postoque a Fortuna possa tanto,
Que
tão longe de todo o bem me aparte.
Não
poderá apartar meu duro canto
Desta
obrigação sua, emquanto a morte
Me
não entrega ao duro Radamanto,
Se
para tristes ha tão leda sorte.
Esquecer
o passado, desejar que venha a morte libertá-lo da sua profunda tristeza, eis
agora o estado d'alma do amargurado poeta. Passemos á canção 10ª, uma das mais
bellas poesias lyricas que conheço, começando por indicar as circumstancias em
que ella foi escripta. A 23 de Setembro de 1554 chegava a Goa a nau S. Boaventura, em que ia o novo vice-rei,
Pedro Mascarenhas (Couto, Década 7ª, aí se lê que a armada partira de Lisboa
por fim de Março, e que nella iam dous mil homens d'armas, em que entravam mais
de quatro centos moradores da casa d'el-rei; um delles era o amigo e admirador
de Camões, João Lopes Leitão, que havia sido pagem da lança do fallecido
principe herdeiro. Segundo Figueiredo Falcão, livro em que se contém toda a
fazenda e real patrimonio dos reinos de Portugal, Índia e Ilhas adjacentes, Lisboa,
1859, as cinco naus, de que se compunha a armada, partiram de Lisboa a 2 de Abril).
Comprehende-se bem o alvoroço com que o poeta esperaria novas do reino, a
pressa com que procuraria encontrar-se com os recem-chegados e ler as cartas
que lhe eram destinadas. E ainda estava longe de presumir o interesse que para
elle tinham algumas dessas novas. Era uma o fallecimento, em 2 de Janeiro
daquelle anno, do mallogrado príncipe herdeiro, João, e o nascimento,
alguns dias depois, de Sebastião, que ficava sendo a única esperança da
independência da pátria». In José
Maria Rodrigues, Camões e a Infanta D. Maria, Separata do Instituto, Imprensa
da Universidade de Coimbra, Coimbra, 1910, há memória do Mal-Aventurado
Príncipe Real Luís Philippe (3 1761 06184643.2), PQ 9214 R64 1910 C1 Robarts/.
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