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«Finalmente,
ela adormeceu. As pálpebras fecharam-se pesadamente e os lábios cheios
deixaram-se ficar um pouco entreabertos. Em contraste com o cabelo castanho-escuro,
a pele imaculada parecia ainda mais clara debaixo da luz brilhante das lâmpadas
da mesa de operações. Os olhos dele percorreram-lhe as maçãs do rosto até ao queixo,
com uma covinha no meio, e vaguearam pelo pescoço comprido, onde a carótida
pulsava suavemente ao ritmo do seu coração. Fez uma pausa, a contar baixinho, e
depois voltou a sua atenção para os ombros expostos, cuja nudez a fazia parecer
vulnerável. Os seios eram de uma forma perfeita e o médico Rahmani não exagerara.
Eram pequenos mas firmes e a sua forma fazia despertar associações de ideias. Não
eram redondos nem ovais. Vieram-lhe à memória imagens de frutos e, pela máscara
protectora, pareceu-lhe que lhe chegava uma fragrância adocicada misturada com o
cheiro do álcool medicinal. A mãe tê-lo-ia amamentado? Acabamos por ser todos vítimas
dos nossos pensamentos. Limpou a testa com as costas da mão. O látex da luva colou-se
à sua pele marcada de cicatrizes. O ventre dela, onde mal se percebia o movimento
ritmado provocado pela respiração que o fazia subir e descer, parecia de
mármore mas, ao mesmo tempo, infinitamente suave. Era um paradoxo. Por
instantes, sentiu o desejo de aí pousar o rosto, mas depois os olhos fixaram-se
no pequeno diamante que parecia verdadeiro que cintilava no umbigo dela. Um piercing. O estômago contraiu-se-lhe e sentiu
um assomo de repulsa. Elas eram assim.
Na sua
busca da beleza não hesitavam perante as dores. Nem receavam ferir a própria carne.
Resistiu ao impulso de, simplesmente, lhe arrancar a pedra preciosa da pele.
Tornar-se-ia, em breve, mais valiosa. Apesar de empalidecer perante o corpo quase
perfeito, o zircónio ainda seria o elemento mais valioso existente no pedaço de
carne que tinha à sua frente. Passou de novo a mão pelo rosto. Sentiu a mesma sensação
de aspereza. Quase aliviado, reparou que o resto da feminilidade dela se encontrava
coberta por um lençol. Tinha a certeza de que o tecido verde-vivo lhe ocultava as
longas pernas. Andara a pensar meticulosamente no que fariam às pernas e haviam
encontrado uma solução satisfatória. Os seus olhos voltaram-se para um instrumento
que parecia um martelo de borracha. Respirou fundo e o olhar cruzou-se com o do
médico Rahmani, que era a única coisa que a protecção facial não ocultava. A luz
das lâmpadas da sala de cirurgia que haviam improvisado reflectia-se nas suas pupilas
e as suas reverberações traíam o nervosismo do médico. Ou seria medo? As sobrancelhas
espessas do médico estavam húmidas e a sua atenção voltou-se para o bisturi que
ele tinha na mão, que tremia.
A ponta
do bisturi traçava riscos luminosos no ar, como se ele estivesse a acenar com um
fósforo aceso. A ilusão visual agradou-lhe. Fê-lo pensar num rastilho cuja extremidade
estava prestes a acender. Sentia uma comichão por baixo de um dos olhos e coçou-se.
O látex na ponta dos dedos aumentou-lhe a sensação de estranheza que a sua pele
do rosto lhe transmitia. Ou dar-se-ia o caso de nem a sentir? Com um aceno de
cabeça, encorajou o médico e, enquanto este se curvava e, respirando pesadamente,
abria a primeira camada de pele, sentiu-se dominado por uma profunda sensação
de felicidade, Olhou pela última vez para a obra criada por Deus que tinha diante
de si. Chegara o tempo de a humanidade conhecer o seu próprio trabalho. Mesmo
que o mundo começasse por ter algumas dificuldades em compreendê-lo. Mas era o primeiro
passo no rumo para a cura deste. E o remédio era de sabor amargo.
Acapulco
Por
um instante, a rivalidade pareceu esquecida. Miss Louisiana conseguira, de algum modo, levar uma garrafa de tequila
disfarçadamente para o autocarro e depois de a bebida, escondida num saco de papel
pardo, ter circulado pelas várias filas de bancos do autocarro, a tensão das candidatas
deu lugar a uma alegria hilariante. Para isso também contribuiu uma expectativa
generalizada: do programa fazia parte uma semana em Acapulco, que era a última etapa
da maratona preparatória para a grande cerimónia final da eleição de miss América.
Bastara-lhes chegar uma hora antes à pista do Aeroporto Internacional General Juan
Alvarez, onde foram recebidas por um muro de ar quente, para nenhuma das jovens
duvidar de que as esperava uma grande semana passada nas mais bonitas piscinas do
México». In Tibor Rode, O Vírus Mona Lisa, 2016, Topseller, 20/20Editora, 2016,
ISBN 978-989-883-989-3.
Cortesia
de Topseller/20/20E/JDACT