segunda-feira, 16 de maio de 2016

História de um casamento. Alexandre Borges. «Na mesma minha de raciocínio, dá-se a explicação para a origem do nome Lumiar. Dinis ter-lhe-ia perguntado que fazia ali. resposta da rainha: vinha “alumiar” o caminho ao esposo»


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O rei Dinis I e a Rainha Santa Isabel
«(…) O povo vai construir a imagem de um rei que vive entre guerras e assuntos de alcova, de tal modo que não se conseguirá, depois, separar a realidade da caricatura. Por isso, as trovas que o monarca Dinis escreve hão-de ser sentenciadas como devaneios sentimentais acerca das suas alegadas conquistas amorosas. Por oposição, a imagem da rainha solitária, distante dos prazeres carnais, sacrificada a educar os filhos dela e os das outras, ajudará a criar em volta de dona Isabel a aura de mulher, esposa e mãe perfeitas, em caminho penitencial rumo à santidade. À imagem das antepassadas, mas possivelmente indo ainda mais longe, a rainha vai usar das suas rendas e autonomia para se dedicar a um épico trabalho de apoio social. Sozinha num mundo de homens, movimenta dinheiros e influências para construir obras de misericórdia. Em Santarém, funda o Hospital dos Inocentes Enjeitados; em Leiria, um hospital e uma gafaria; em Coimbra, o Hospício dos Pobres, o Hospital de Velhas Inválidas e o Recolhimento para a Regeneração das Desgraçadas. Manda construir albergarias em Estremoz, Alenquer e Odivelas, e uma gafaria em Óbidos. A obra mais emblemática, o Mosteiro de Santa Clara, diante de Coimbra, mandara-a levantar volvidos quatro anos de casamento.
Estes são os factos. Ao redor deles conta-se depois um ror de coisas. Que acompanhava pessoalmente as obras e dava indicações precisas de arquitectura e engenharia. Que tinha conhecimentos de medicina e enfermagem, criando mezinhas próprias (já depois da sua morte, diz-se que as freiras de Santa Clara tratavam mulheres sem leite para amamentar com um remédio criado pela rainha à base de penas de galinha branca). Que vendia as suas jóias para comprar trigo a reinos estrangeiros com que saciar a fome aos pobres. Que tratava chagados e leprosos com as próprias mãos e curava doentes no simples movimento de lhes beijar as feridas. Que saía às escondidas do marido para distribuir esmolas. E que, numa dessas ocasiões, teria sucedido o célebre milagre das rosas, descrito nestes termos por frei Marcos Lisboa, na Crónica dos Frades Menores.

Levava uma vez a Rainha Santa moedas no regaço,
para dar aos pobres. Encontrando-a, el-rei lhe perguntou
o que levava. Ela disse: levo aqui rosas.
E rosas viu el-rei, não sendo tempo delas.

Curiosamente, este episódio só surgiria relatado pela primeira vez cerca de um século depois da morte da rainha. E era em tudo semelhante a um outro que se contava já acerca da sua tia-avó homónima, Santa Isabel da Hungria. Mas há todo um outro género de lendas em volta da Rainha Santa. Um conjunto menos religioso e mais humorístico, dedicado à toponímia e mais directamente inspirado nos seus desamores com o marido... De acordo com uma determinada corrente popular, Dinis não se teria interessado por Odivelas na tal caçada em que fora salvo pelos santos dum urso feroz, mas porque a zona seria ponto de encontro recorrente com as amantes. Assim, de acordo com esta versão, certa vez teria a rainha perdido a paciência com as ausências do esposo e decidido procurá-lo. Encontrando-o na dita região às portas de Lisboa, teriam encetado acalorada conversa. Perante a obstinação do rei em regressar ao palácio sem antes tratar dos assuntos que ali o haviam trazido, Isabel teria então respondido: oh! Ide vê-las, senhor! De Oh-ide-velas, a Odivelas teria sido, pois, um pequeno pulo coloquial.
Na mesma minha de raciocínio, dá-se a explicação para a origem do nome Lumiar, ligeiramente mais abaixo no mapa nacional. A mesma situação, a mesma atitude: estando Dinis ausente, dona Isabel parte à sua procura, desta vez acompanhada de alguns criados, empunhando tochas. Ao ver a mulher por aquelas paragens, Dinis ter-lhe-ia perguntado que fazia ali, àquelas horas da noite. Resposta da rainha: vinha alumiar o caminho ao esposo, dado que este se encontrava cego de amor». In Alexandre Borges, Histórias Secretas de Reis Portugueses, Casa das Letras, 2012, ISBN 978-972-46-2131-9.

Cortesia de CdasLetras/JDACT