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Rennes
le Château. 11 de Novembro de 1888
«(…)
Bérenger estava a mil léguas da Eucaristia. Os arranhões de Marie ardiam-lhe no
corpo, os gritos da rapariga ressoavam-lhe na cabeça. Os seus pensamentos ainda
se confundiam na doce modorra que nasce no amor. Conseguiu responder com
aprumo: sei que diz a verdade. Sei distinguir o bem do mal, é um dom que Deus
me concedeu. O senhor é um homem de bem, e a partir de agora abro-lhe as portas
da minha casa e do meu coração. Mas permita-me que lhe pergunte de que país
vem. O nome francês não consegue disfarçar que é estrangeiro. Não me
surpreenderia se me dissesse que é alemão. Austríaco. Austríaco! E chama-se
realmente Guillaume? Não... Perdoe-me..., não tenho o direito de continuar a
mentir-lhe. Sou o arquiduque João Estêvão Habsburgo, primo do imperador da
Áustria-Húngria e descendente do grande Rodolfo. Foi como se o céu se abatesse
sobre a sua cabeça, como se um vendaval o atirasse ao chão. A imagem de Marie
apagou-se dos seus pensamentos. Sentou-se, sentindo-se atordoado. Sob a luz
cinzenta, tudo à sua volta lhe parecia sujo e vetusto. No seu miserável quarto,
estava um dos homens mais poderosos da terra. O arquiduque... O Habsburgo...
Ali mesmo, em sua casa, no meio daquela espelunca esquecida de Deus. Ainda não
conseguia acreditar. O que é que devia fazer? E pensar que o príncipe tinha
bebido o seu mau vinho...
Bérenger
sentia vontade de despertar. Nunca tinha estado em semelhante situação, salvo
nos seus sonhos matutinos, além do mais, sempre interrompidos. Mas talvez isso
mesmo os tornasse suportáveis. Agora, o sonho era real. O príncipe era de carne
e osso, estava ao alcance da sua mão, sorria como qualquer homem. Perdoe-me por
o ter recebido assim, sua excelência, balbuciou Bérenger. Não tem nada que
pedir desculpa..., e, sobretudo, nada de etiqueta entre nós. Chame-me Estêvão.
Nunca se esqueça que o meu apelido é Guillaume, que o meu pai é francês e a
minha mãe é austríaca e que sou viajante de comércio. Não sei se conseguirei...
Faz parte da sua missão. Qual missão? Sabê-lo-á quando chegar o momento...
Tranquilize-se... Não sou eu quem lhe deve dizer em que consiste. Foi escolhido
para ela pelo Priorado de Sião, de que sou membro. É tudo quanto posso revelar.
O nome não me diz nada... Onde fica esse priorado? Depende de Roma? Boudet e
Billard contam-se entre os seus membros? E Elias? O senhor faz parte do mesmo
grupo deles? Diga-me. Faço parte do grupo de Deus. Você aceita esta explicação?
Eu...
Seja
razoável Saunière. Encarregar-nos-emos que faça fortuna, mas deve dar-nos
tempo. Creio que irá encontrar com que se entreter. Com que se entreter? O que
é que insinuava com isso? Bérenger compreendeu logo a seguir. O arquiduque
levantou-se e dirigiu-se para a escada, acariciou o corrimão com as costas da
mão, escrutando o tecto. Não é o suficiente, bem sei, murmurou com o ouvido
colado à madeira. Tenha a bondade de aceitar também isto. Meteu a mão num bolso
e atirou-lhe um pequeno saco. Bérenger apanhou-o no ar. Ficou estupefacto
quando o despejou em cima da mesa. Eram moedas de cem francos de ouro. Estão aí
mil francos, disse Estêvão ao seu lado. É um segundo adiantamento, para que
ultrapasse os seus problemas com paciência. O senhor enfrentou a República, e
pediu ajuda aos monárquicos. A condessa de Chambord atendeu, uma vez mais, a
sua súplica. Confio que dê bom uso a essa oferta da Casa de França... Então,
Estêvão atirou-lhe um segundo saco: estão aqui mais mil francos. Da parte da
Casa da Áustria. Poderá substituir a pedra do altar-mor que, pelos vistos, se
encontra em muito mau estado.
Bérenger
respondeu: terei... Terei paciência. Diga aos seus amigos do Priorado de Sião
que podem contar comigo. Magnífico!, exclamou Estêvão. Assim é que se fala.
Aperte a mão, padre, e brindemos uma vez mais antes que me faça ao caminho. Tenho
de me ir embora a seguir, aguardam-me outras tarefas. Bérenger apertou-lhe a
mão, brindou com ele, acompanhou-o à porta. O sonho tinha terminado, mas o ouro
ainda brilhava sobre a mesa. Podia, finalmente, mandar restaurar a igreja.
Brincou com as moedas, fazendo-as rodar. A inscrição dos cantos rezava, Deus
proteja a França. Que Deus nos proteja, murmurou também uma voz, nas suas
costas. Marie abraçou-o pelos ombros, acariciando-lhe os cabelos. As suas
ternas carícias afastaram-no das moedas, voltou-se, abraçou-a contra o peito.
Começou a beijar-lhe outra vez o pescoço. Sei que te mandaram ter comigo para
me fazeres sucumbir, disse-lhe, entre os beijos. Que suave que é a tua pele...
Sei que não me contarás nada. Não importa... A única coisa que conta é a
verdade que agora brilha nos teus olhos. Olha para mim. A rapariga tinha os
olhos humedecidos. Havia amor no seu olhar. Nele também havia paixão.
Precisamente quando ia dizer-lhe amo-te, Bérenger esmagou-lhe os lábios
com um beijo». In Jean-Michel Thibaux, O Mistério do Priorado de Sião,
Rennes-le-Chatêau, 1888, 2004, tradução de Jorge Fallorca, A Esfera dos Livros,
2006, ISBN 989-626-019-2.
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