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PECCAVI
«A
palavra latina foi inscrita com sangue na cena de um crime particularmente
macabro: pequei. A expressão, mais sinistra ainda nessa solitária noite
de Natal, parece uma forma de saudação perversa à médica-legista de Boston,
Maura Isles, e à detective Jane Rizzoli. Ambas estabelecem rapidamente uma
ligação entre o assassínio da jovem que ali jaz e a psiquiatra Joyce O'Donnell,
uma celebridade muito controversa que é também uma adversária de Maura e que
faz parte de uma sociedade secreta denominada o Clube Mefisto. Os membros desse
clube dedicam-se à análise do mal. Será ele explicável pela ciência? E terá uma
presença física? Andarão os demónios pelos caminhos da Terra? Baseando-se numa
imensidão de factos históricos e numa misteriosa simbologia religiosa, os
investigadores do Clube Mefisto procuram demonstrar uma teoria inquietante: satanás
e os seus demónios estão, de facto, entre nós. Mas então o aparecimento de mais
um cadáver, desta vez junto à casa onde se reúne o Clube Mefisto, vem
evidenciar que alguém ou alguma coisa anda realmente pela cidade em busca de
novas vítimas. Os membros do clube começam a recear o próprio tema das suas
investigações. Terão eles inadvertidamente invocado uma qualquer entidade das
sombras? Maura e Jane são assim arrastadas para uma terrível viagem ao âmago do
mal. Onde irão enfrentar um inimigo bem mais perigoso do que todos aqueles que
já alguma vez perseguiram. Um inimigo cuja tarefa apenas se iniciou.
Somente
um pequeno grupo se reunira nesse dia de Junho quente e infestado de insectos
para assistir ao enterro de Montague Saul, não mais do que uma dúzia de
pessoas, muitas das quais o rapaz nunca vira antes. Nos últimos seis meses
estivera longe, no colégio interno, e agora estava a ver algumas dessas pessoas
pela primeira vez. A maior parte delas não lhe interessava minimamente. Mas a
família do seu tio, essa sim, interessava-lhe muito. Valia a pena examiná-la. O
médico Peter Saul parecia-se muito com o seu falecido irmão, Montague, magro e
cerebral nos seus óculos de lentes grossas que lhe davam um ar de mocho, cabelo
castanho a rarear para uma inevitável calvíce. A sua mulher, Amy, tinha um
rosto redondo e terno, e continuava a lançar olhares preocupados ao seu sobrinho
de quinze anos, como se ansiasse por envolvê-lo nos seus braços e abafá-lo com
um abraço. O filho deles, Teddy, tinha dez anos, e era todo ele magricelas. Um
pequeno clone de Peter Saul, até
mesmo nos óculos de lentes grossas. Finalmente havia a filha, Lily. De
dezasseis anos. Madeixas do seu cabelo tinham-se soltado do rabo-de-cavalo e
agora pegavam-se-lhe à cara com o calor. Parecia desconfortável no seu vestido
preto, e continuava a mexer-se impetuosamente para trás e para a frente, como
se se preparasse para fugir dali. Como se preferisse estar em qualquer lugar
menos neste cemitério, afastando o zumbido dos insectos. Parecem tão normais,
tão vulgares, pensou o rapaz. Tão diferentes de mim. Então, de repente, o olhar
de Lily cruzou-se com o seu, e ele sentiu um frémito de surpresa. De mútuo
reconhecimento. Nesse instante, quase conseguia sentir o olhar dela a penetrar
nas mais obscuras fissuras do seu cérebro, examinando todos os lugares secretos
que nunca ninguém vira. Que ele nunca deixara que vissem.
Inquieto,
desviou o seu olhar. Focando-o, em vez dela, nas outras pessoas que se
encontravam à volta da sepultura: a governanta do seu pai, o advogado, os dois
vizinhos do lado. Meros conhecimentos que estavam ali somente por uma questão
de conveniência social, e não por estima. Conheciam Montague Saul apenas como o
tranquilo erudito que regressara recentemente de Chipre, que passara a vida
preocupado só com livros, mapas e pequenas peças de cerâmica. Não conheciam
realmente o ser humano. Tal como não conheciam realmente o filho dele. Por fim,
o serviço fúnebre terminou e o grupo avançou para o rapaz. Como uma amiba
preparando-se para o ingerir com a sua compaixão, para lhe dizer como
lamentavam que ele tivesse perdido o pai. E tão pouco tempo depois de ter
regressado aos Estados Unidos. Pelo menos tens aqui família para te ajudar,
disse-lhe o pastor.
Família?
Sim, suponho que estas pessoas são a minha família, pensou o rapaz, enquanto o
pequeno Teddy se aproximava timidamente, empurrado pela mãe. Agora vais ser o
meu irmão, disse Teddy. Vou? A mãe preparou o teu quarto. É mesmo ao lado do
meu. Mas eu estou a morar aqui. Na casa do meu pai. Perplexo, Teddy olhou para
a mãe. Ele não vem connosco para a nossa casa? Amy Saul atalhou. Não podes
viver sozinho, querido. Só tens quinze anos. Talvez gostasses igualmente de
Purity, vais gostar de ficar connosco. A minha escola é no Connecticut. Sim,
mas o ano escolar acabou. Em Setembro, se quiseres regressar ao teu colégio,
claro que podes fazê-lo. Mas durante o Verão virás para nossa casa. - Eu não
ficarei sozinho aqui. A minha mãe virá ter comigo. Fez-se um longo silêncio.
Amy e Peter olharam um para o outro, e o rapaz conseguiu perceber o que eles
estavam a pensar. A mãe dele abandonou-o há muito tempo. Ela vem ter comigo,
insistiu. O tio Peter disse suavemente. Falamos disso depois, filho.
À
noite, o rapaz ficou acordado na cama, na casa do seu pai na cidade, ouvindo as
vozes dos seus tios murmurando lá em baixo, no escritório. O mesmo escritório
em que Montague Saul tinha trabalhado nestes últimos meses na tradução dos seus
frágeis fragmentos de papiro. O mesmo escritório onde, há cinco anos, sofrera
uma apoplexia, desabando sobre a sua secretária. Estas pessoas não deviam estar
ali, entre as preciosidades do seu pai. Eram invasores da sua casa. Ele não
passa de um rapazinho, Peter. Precisa de uma família. Não podemos propriamente
arrastá-lo para Purity se não quiser ir connosco. Quando se tem apenas quinze
anos não temos voto na matéria. São os adultos que têm de tomar decisões. O
rapaz saiu da cama e deslizou para fora do quarto. Rastejou até metade da
escada para ouvir a conversa. E, na verdade, quantos adultos é que ele
conheceu? O teu irmão não era exactamente um bom exemplo disso. Estava tão
embrulhado nas ligaduras das suas velhas múmias que provavelmente nunca reparou
que tinha uma criança debaixo dos pés. Isso é injusto, Amy. O meu irmão era um
bom homem. Bom, mas tolo. Nem consigo imaginar que tipo de mulher poderia
sonhar ter um filho com ele. E depois deixa o filho para o Monty educar? Não
consigo compreender que uma mulher fizesse tal coisa. O Monty não se saiu assim
tão mal na educação dele. O rapaz tem tido notas altas na escola. É essa a tua
bitola para o que faz um bom pai? O facto de o rapaz ter notas altas? Ele é
também um homenzinho aprumado. Vê como se portou durante o serviço fúnebre. Está
entorpecido, Peter. Viste uma única emoção na cara dele, hoje? O Monty também
era assim. Insensível, é isso que queres dizer? Não, um intelectual. Um espírito
lógico. Mas, por baixo de tudo isso, tu sabes bem que este rapaz devia estar a
sofrer. Deu-me vontade de chorar, ver quanto ele precisa da mãe neste momento.
Ver como ele insiste que ela voltará para estar com ele, quando sabemos que não
o fará». In Tess Gerritsen, O Clube Mefisto, 2006, Ulisseia, colecção Vício da
Leitura, 2008, ISBN 978-972-568-602-7.
Cortesia
de Ulisseia/JDACT